A escalada da temperatura global empurra para cima indicadores de insegurança alimentar, fome e desigualdade socioeconômica. Dados divulgados recentemente pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM), uma agência especializada das Nações Unidas, confirmam essa premissa e expõem sua assustadora dimensão humana. Em 2023, quando a temperatura global cravou o recorde de 1,45°C acima da média registrada no período de 1850-1900, pelo menos 333 milhões de pessoas estavam vivendo em situação de insegurança alimentar mundo afora.
A mudança climática não é, obviamente, a causa primária dessa massa de desvalidos, como ressalta a OMM em seu recente relatório Estado do Clima Global. Conflitos, violência, crises econômicas locais, preços de alimentos e quebras de safras agrícolas estão comumente no epicentro do problema. Porém, são agravados por secas, inundações e eventos climáticos cada vez mais acentuados e frequentes – os efeitos há muito reconhecidos do aquecimento global. Esse quadro explica o aumento da pobreza e da fome no planeta e a desesperada migração de contingentes humanos vulneráveis para locais onde esperam, no mínimo, sobreviver.
“A crise climática é o maior desafio da humanidade e está diretamente relacionada à desigualdade e ao aumento da pobreza e da instabilidade, com agravamento da insegurança alimentar, de deslocamento de populações e da perda de biodiversidade”, resumiu Celeste Saulo, secretária-geral da OMM.
Os detalhes do relatório trazem constatações mais dramáticas. Entre elas, o fato de ter triplicado o número de pessoas submetidas à situação de insegurança alimentar entre 2019, antes da pandemia de covid-19, e 2023. Esse total passou de 149 milhões para 333 milhões. No mesmo período, o contingente de desnutridos manteve-se em 735,1 milhões – o equivalente a 9,2% da população mundial no ano passado. Embora estarrecedores, esses números se referem ao monitoramento das Nações Unidas em apenas 78 países.
Embora subestimados, como assinala a própria OMM, tais dados servem como referência para a cooperação internacional no combate às causas climáticas da insegurança alimentar e da fome. Há urgência nessa comunhão de esforços de nações, organismos multilaterais e regionais e empresas, visto que são mínimas as chances de o cenário climático provar-se menos ruim em 2024 e nos próximos anos. O rastro de males e tragédias deixado em 2023, quando a concentração dos principais gases do efeito estufa foi 50% maior do que na era pré-industrial, é altamente preocupante.
Nada o ilustra melhor do que a evidência da OMM de que, na Antártida, uma área de gelo equivalente à soma dos territórios da França e da Alemanha desapareceu – literalmente, virou água. As consequências ambientais de tal destruição são inimagináveis, mas é certo que a perda da cobertura gelada acelera ainda mais o aquecimento global. Os dados do relatório indicam que houve ondas de calor em um terço dos oceanos no ano passado, o que gerou prejuízos aos ecossistemas e ao sistema alimentar em todo o mundo. Assim como a Antártida, os glaciais remanescentes e a Groenlândia perderam camadas de gelo, antes consideradas eternas, em níveis recordes.
Diante de sucessivos alarmes disparados por entes científicos altamente respeitados, completados agora pelo relatório da OMM, surpreende o fato de a resposta internacional à crise climática continuar aquém da necessária. Sobretudo, quando se trata do financiamento de ações para conter o aquecimento global, mitigar seus efeitos e promover a transição energética em países mais pobres e em desenvolvimento.
No período 2021-2022, o total disponível para essas tarefas foi de US$ 1,3 trilhão – cifra insuficiente, segundo a organização. Em seus cálculos, esses fundos terão de crescer a US$ 9 trilhões ao ano em 2030 e, depois, saltar para US$ 10 trilhões anuais até 2050 para contornar minimamente a crise. O resgate da dignidade de centenas de milhões de pessoas desprovidas de alimentos dependerá desses aportes e dos compromissos mais ambiciosos das nações para conter o aquecimento global.