Na tarde de domingo, o soldado Wesley Soares Góes, da Polícia Militar (PM) da Bahia, se paramentou para a guerra, pintou o rosto de verde e amarelo, carregou um fuzil e saiu de Itacaré, ao sul de Salvador, até o Farol da Barra, ponto turístico da capital baiana. No local, disparou diversas vezes para o alto. Gritou palavras de ordem e falas desconexas. Testemunhas descreveram que o soldado estava em “surto psicótico”. Após horas de negociações conduzidas por policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), Wesley abriu fogo contra os próprios colegas de farda. Acabou atingido e morreu no hospital.
Não tardou para que apoiadores do presidente Jair Bolsonaro transformassem esse ato de insânia em uma espécie de ação de resistência contra as medidas de proteção sanitária decretadas pelo governador Rui Costa (PT), tais como fechamento de comércio não essencial e toque de recolher. Consta que Wesley teria se insurgido contra a “violação da dignidade e da honra do trabalhador”.
Nas redes sociais, bolsonaristas de quatro costados, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, e Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do governo federal, logo alçaram o desmiolado policial militar ao panteão dos heróis nacionais.
Antes de apagar suas publicações, Bia Kicis afirmou que “Wesley morreu porque se recusou a prender trabalhadores, porque disse não às ordens ilegais” do governador Rui Costa. “Chega de cumprir ordens ilegais”, concluiu a deputada, praticamente incitando uma sublevação da PM da Bahia. E houve quem esperasse que esta senhora passasse por uma guinada civilizatória após ela ter sido escolhida para presidir a CCJ, a comissão permanente mais importante da Câmara dos Deputados. Vê-se que é um caso irremediável.
Felipe Pedri, por sua vez, contribuiu para a glorificação do malfadado policial dizendo que “lúcido, o PM Wesley Góes perdeu sua vida mostrando a loucura em que se encontra uma sociedade que abandonou seus princípios básicos de convivência em nome de uma suposta segurança sanitária”.
É evidente que nem Kicis nem Pedri pensam e escrevem essas tolices por conta própria. Sentem-se à vontade porque a exploração política do trágico episódio se insere em um contexto de inoculação da ideologia bolsonarista no seio das forças de segurança, sobretudo nos Estados, em razão da guerra particular que Jair Bolsonaro resolveu travar com os governadores em meio ao combate à pandemia. E, é claro, de olho na disputa eleitoral do ano que vem.
Embora não tenha se manifestado publicamente sobre o caso na Bahia, convém lembrar que Bolsonaro foi solidário ao motim da Polícia Militar do Ceará, em fevereiro do ano passado, classificado por ele como uma “greve legítima”, malgrado o fato de não ser dado aos policiais militares o direito à greve. O grupo político ligado ao então deputado federal Jair Bolsonaro também esteve na linha de frente do arranjo que levou ao motim dos policiais militares do Espírito Santo, em fevereiro de 2017. Há um método nessa loucura.
Preocupados com este novo capítulo da exploração política das forças de segurança pelo presidente ou seus apoiadores, 16 governadores, entre os quais Rui Costa (PT), da Bahia, João Doria (PSDB), de São Paulo, e Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, assinaram uma carta em que denunciam a tentativa de Bolsonaro de “criar uma instabilidade institucional” no País.
“Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir os governadores e os adversários políticos são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”, diz um trecho da carta dos governadores. Não se trata de um manifesto trivial. Deve ser levado a sério.
A Bolsonaro interessa muito esse clima de tensão que paira sobre o País. A vida pregressa do presidente mostra que ele só se sente à vontade no caos. Cabe às instituições a serviço da liberdade e das leis não lhe dar este conforto.