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O economista José Serra escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | A desmontagem fiscal

A sensação é de que a institucionalidade fiscal vai se desfazendo na sanha por recursos, cujos contendores não entendem nenhum limite

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Na Constituição de 1988, relatei o Capítulo das Finanças Públicas, na condição de deputado constituinte. Toda confusão fiscal da década de 1980 impunha que o redesenho do aparato de planejamento, orçamento e gasto fosse solidamente delineado pela nova Carta.

Na verdade, a ditadura militar nos brindou com uma bagunça institucionalizada nas contas governamentais. Com a arrogância própria daqueles que se julgam portadores das verdades econômicas assim como os golpistas de 2022, o governo militar executava um orçamento alternativo, muitas vezes maior do que as minguadas dotações do Orçamento que era votado no Congresso. Este último não poderia alterar nada, devendo aprovar a proposta do Executivo tal como enviada ao Legislativo.

A bagunça fiscal era tamanha, que os recursos públicos ficavam espalhados por milhares de contas dos órgãos, ministérios, secretarias e departamentos da União. No caso do crédito agrícola, muito expressivo e importante, as decisões estavam totalmente fora do Legislativo e mesmo do Executivo, porque o Banco do Brasil dominava o processo.

A principal inovação foi a construção de um sistema integrado de planejamento e orçamento com interação entre o Executivo e o Legislativo. O Plano Plurianual (PPA), proposto e votado no primeiro ano de governo, daria as linhas gerais da ação do Estado. Ano a ano, a Lei de Diretrizes Orçamentárias seria votada no primeiro semestre para dar diretrizes da formatação da proposta orçamentária anual, em alinhamento com o PPA. A Lei de Responsabilidade Fiscal veio dar mais solidez ao arcabouço constitucional.

A Constituição veio, também, consolidar os avanços do governo Sarney, como a criação da Secretaria do Tesouro Nacional. Mas foi muito além, restabelecendo as condições de participação do Congresso na decisão sobre o gasto. Vale notar que o Orçamento-Geral da União passou a abarcar todos os desembolsos comandados pelo governo: empresas, fundações, fundos e operações de créditos.

Se o passado orgulha o Brasil, a desintegração do aparato de planejamento, orçamento e gasto que temos visto, na última década, parece um sintoma da falência da institucionalidade brasileira.

Vale um breve histórico da trajetória do desastre. Desde a Constituição de 1988, foi possível aos congressistas apresentar emendas ao projeto de lei orçamentária, sempre indicando a fonte de financiamento e não sendo essa referente a um gasto obrigatório.

Inicialmente, os congressistas buscaram aumentar o tamanho do Orçamento, indicando erros e omissões do Executivo na estimativa de receitas, dado que não poderiam mudar o gasto obrigatório (em juros e salários, por exemplo). Assim, abriu-se o espaço para que as emendas individuais (RP6) passassem a um montante expressivo.

Até aí, houve uma imensa queda de braço nas liberações financeiras do pagamento das emendas, a cada votação importante. Mas o Executivo tinha o controle. No entanto, 2015 foi um ponto de inflexão, quando as emendas ganharam o status de impositivas. Vale lembrar que o Orçamento como um todo é autorizativo sendo regulado pelo fluxo de receitas. Essas emendas passaram, no entanto, a ser de pagamento obrigatório. Em 2015, eram R$ 9,7 bilhões e, em 2024, chegaram a R$ 25,1 bilhões.

Como o poço não tem fundo, a Emenda Constitucional 105/2019 criou as emendas Pix, um verdadeiro espetáculo de descompromisso com o mínimo de transparência no uso dos recursos públicos. Elas permitem repasses diretos a Estados e municípios, sem necessidade de indicar objetivo e destinatário. Essa modalidade exótica representa cerca de um terço das emendas individuais.

Mais, as emendas de bancada (por Estado) ganharam condição de impositivas, em 2019, e rapidamente abandonaram a ideia de grandes investimentos regionais para serem picadas entre os parlamentares.

O crescimento do poder dos presidentes da Câmara e do Senado foi concomitante à emergência, em 2020, da emenda de relator (RP9). Esse orçamento secreto não durou muito, frente aos questionamentos do Judiciário.

Como criatividade não falta, a expansão do poder do Congresso sobre as contas públicas vem, agora, na forma de emendas de comissão. A briga é a mesma, apenas o formato jurídico vai mudando. Agora a forma de ganhar um filão cada vez maior do Orçamento é a emenda de comissão (RP8), criada pela Resolução 1/2006 do Congresso Nacional, mas sem previsão constitucional. Em 2024, elas correspondem a R$ 15,4 bilhões no Orçamento.

Numa suprema ironia, a Lei Complementar 210/2024 obrigou que 50% das emendas de comissão fossem para a saúde. A necessidade de cumprir o mínimo constitucional transformou metade das emendas de comissão em gasto obrigatório. E o Ministério da Fazenda aplaude, tanto que a medida é citada no pacote fiscal.

A sensação que esse processo deixa é de que a institucionalidade fiscal vai se desfazendo na sanha por recursos, cujos contendores não entendem nenhum limite. Mas o Brasil tem muito a perder com isso.

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ECONOMISTA

Opinião por José Serra

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