EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

O economista José Serra escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Da ‘Carta ao Povo Brasileiro’ ao vídeo ao povo brasileiro

Vídeo de 2024 é quase uma confissão de impotência ante o mercado, assim como a carta de 2002 era a mensagem de que o PT não faria nada do que sempre propôs

Foto do author José Serra

Em 2002, quando disputei a minha primeira eleição a presidente da República, na sucessão de Fernando Henrique Cardoso, deparei-me com um PT que jurava que não era o PT. A Carta ao Povo Brasileiro, urdida nos porões da burocracia petista, vendia a alma em troca da aceitação do mercado financeiro de um governo de esquerda.

E aí já começava a ópera bufa. Aqueles ativistas radicais que pregavam o “fora FHC” em manifestações estridentes, os que saíram em caravana pelo dito “Brasil real” para apontar as mazelas do governo capitalista pareciam não existir mais. Já dos que haviam criticado e se posicionado contra o Plano Real, nem uma sombra restou.

Lula passara a ser o comandante de um partido pronto a dar garantias de que seria perfeitamente adequado ao establishment. A Carta ao Povo Brasileiro expressava um cavalo de pau ideológico desavergonhado. Ela dizia que sim, os contratos seriam respeitados, mas queria dizer mais: que o mercado financeiro podia confiar que o governo petista manteria tudo como dantes. A Carta sepultou as palavras de ordem e mudou a forma de o Partido dos Trabalhadores compreender a realidade. Antigos inimigos execráveis passaram, rapidamente, à condição de parceiros.

Pois bem, passaram-se 22 anos. Embora o PT tente equacionar sua geralmente débil credibilidade, que tem origem na contabilidade criativa do segundo governo Lula e nas traquinagens contábeis do governo Dilma, sim, há uma história de “malandragens” na gestão da política fiscal dos governos do PT, e isso turbina o descrédito do mercado, jogando lenha na fogueira dos processos especulativos.

Nos últimos dias, o mesmo quadro de desconfiança do chamado “mercado” para com o governo ganhou uma forma aguda. O centro visível da questão era a distância entre a realidade das contas públicas e as metas que o próprio governo propôs dentro do arcabouço fiscal.

Mas o descrédito nem veio do quantitativo do pacote fiscal. O visível descompromisso do conjunto do governo e do presidente com a montagem das medidas deu a indicação de que o passado da contabilidade criativa não tinha sido enterrado. Para completar, a desastrosa comunicação do pacote à sociedade deixou escancarada a dificuldade interna do governo de articular os compromissos políticos, os interesses estabelecidos e as contas públicas.

O conjunto de medidas fiscais que tinha apoio fragmentado internamente ao Executivo chegou ao Legislativo da pior forma. Primeiro porque a exuberância dos posicionamentos dos presidentes das duas Casas Legislativas deixou claro que o governo não tinha o controle do processo. Segundo, porque ver o pacote derrotado indicaria uma imensa fragilidade política e fiscal.

Os R$ 8 bilhões despejados na forma de pagamentos de emendas aos parlamentares, em dezembro, não são apenas a normalidade desta forma heterodoxa de negociação de ideias para basear a construção das leis que dão suporte jurídico ao funcionamento de nossa economia e da sociedade brasileira. Em verdade, são fruto do desespero governamental em perder novamente o jogo do Congresso.

Enquanto isso, as tensões no mundo financeiro explodiam. As estimativas de taxas de juros futuros foram às nuvens diante dos movimentos de elevação da Selic e do comunicado do Banco Central de que novas correções de 1% seriam realizadas nas duas próximas reuniões. As taxas dos títulos do Tesouro também explodiram, gerando grandes estragos nas carteiras dos investidores e até dificuldades de negociação de títulos já emitidos.

No mercado de câmbio, a forma mais visível da crise, o dólar chegou aos R$ 6,30. Não foi pura especulação, afinal há um forte movimento de transferência de lucros das filiais brasileiras a suas matrizes no final do ano. Estas podem ter sido turbinadas pela insegurança sobre possíveis medidas com respeito ao Imposto de Renda das empresas e pelo volume de lucros gerado em 2024.

Não há dúvida de que ocorreu um processo especulativo, baseado na insegurança fiscal, na elevação da taxa de juros e na percepção de debilidade do governo. Pior, o guardião da moeda, o Banco Central, ficou apenas olhando, como se não tivesse nada que ver com aquilo. Depois, saiu correndo atrás e teve de despejar bilhões de dólares para estancar a hemorragia.

Ao final da ópera o País foi brindado com o vídeo ao povo brasileiro, veiculado pelas redes sociais, com direito à presença de Lula, Haddad e Galípolo. Nele, Lula sucumbe ao “mercado”, que tanto atacara recentemente, e promete que não se intrometerá na política monetária do Banco Central. De quebra, reautoriza Haddad como condutor das decisões sobre as contas públicas.

O vídeo ao povo brasileiro é quase uma confissão de impotência ante o mercado. Assim como a Carta ao Povo Brasileiro era a mensagem de que o PT não faria nada do que sempre propôs. Só que a discrepância entre o discurso e a prática é o combustível dos processos especulativos, ancorados na falta de credibilidade.

*

ECONOMISTA

Opinião por José Serra

Economista

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.