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O economista José Serra escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Desenvolvimento regional na reforma tributária

Se bem concebido e utilizado, fundo criado pela EC 132/23 poderá moderar o processo de mudança, protegendo partes das cadeias produtivas existentes e impedindo graves dramas sociais

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A recente aprovação da Emenda Constitucional (EC) 132/2023 colocou em destaque um dos aspectos das políticas governamentais que foi, por 40 anos, a grande questão federativa brasileira: a guerra fiscal. Em paralelo, o tema do desenvolvimento regional ganhou um Fundo Nacional (Art. 159-A), como instrumento governamental para reduzir as desigualdades entre as regiões brasileiras.

Os dois temas têm ampla articulação e é crucial que ela seja compreendida para que os novos instrumentos sejam superiores aos usados no passado. Construir bases sólidas para a nova institucionalidade é fundamental para o futuro do País e da Federação.

Mas é necessária uma pequena visita aos anos 80 do século passado para entender os primórdios da questão que hoje se coloca. Na esteira da crise das contas públicas, a década de 1980 foi palco de uma reversão de todas as políticas de incentivo ao investimento amparadas em recursos tributários.

A implantação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), sob princípio da cobrança pelo destino do consumo de bens e serviços, em substituição ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre Serviços (ISS), tem uma característica que põe fim à guerra fiscal entre os Estados. Explicando melhor, o ICMS, quando um produto é produzido em um Estado e vendido ao consumidor em outro, gera receita tributária para os dois Estados, de forma compartilhada.

Esta forma híbrida abriu o espaço para a guerra fiscal. Diversos Estados ofereceram incentivos fiscais às empresas que buscavam vender seus produtos em Estados com elevado consumo de bens finais. Por exemplo, num produto produzido e vendido num Estado a R$ 100, o ICMS seria de R$ 18. Para atrair o investimento, outro governo poderia oferecer a partilha do ICMS que seria arrecadado. Na operação de venda interestadual, o Estado no qual a produção viesse a ter lugar faria jus a R$ 12, enquanto o Estado onde o consumo se deu teria R$ 6 de receita.

A guerra fiscal era justamente a oferta de devolução de uma parte destes R$ 12 à empresa que estava tomando a decisão de investir. Se R$ 10 (dos R$ 12) fossem devolvidos sob a forma de créditos presumidos, o produto poderia ser vendido a R$ 90 ou o produtor lucraria R$ 10 a mais. Em todos os casos, a guerra fiscal teve grande impacto sobre a localização regional da capacidade produtiva de nossa economia.

Milhões de páginas já foram escritas sobre o tema e, evidentemente, houve perda de arrecadação no conjunto do ICMS. Só que temos de atentar para a realidade. Num país em que o governo central demonstrou baixa capacidade de trabalhar no sentido da redução do desequilíbrio regional, a guerra fiscal acabou por cumprir o papel de instrumento de descentralização da base econômica. E temos de admitir que, por vezes, a decisão de uma empresa de investir no Brasil ou em outro país foi influenciada positivamente pelo subsídio ao investimento contido na guerra fiscal.

A entrada em operação do IBS, que se estenderá de 2029 a 2033, colocará fim à guerra fiscal e neste recurso que poderíamos definir como um subsídio torto ao investimento. Vale ressaltar, como o IBS será cobrado pelo Estado onde estiver o destinatário do bem ou serviço, não haverá o que dividir entre o Estado produtor e Estado consumidor, impedindo que o governo ofereça qualquer tipo de benesse na tributação do valor adicionado.

Este é, certamente, um dos pontos mais importantes da Emenda Constitucional 132/2023 e merece todo apoio. No entanto, é necessário olhar a realidade que se construiu por 40 anos de práticas de guerra fiscal em torno do ICMS. Há que ter em mente que a herança dessas práticas está manifesta em plantas produtivas, canais de comercialização, estradas, logísticas e trabalhadores.

A Emenda Constitucional criou o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Os recursos federais alocados ao fundo serão de R$ 8 bilhões, em 2029, aumentando ano a ano até chegar, em 2040, a R$ 60 bilhões. Os objetivos manifestos são: 1) realizar estudos, projetos e obras de infraestrutura; 2) fomentar atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, incluindo a concessão de subvenções econômicas e financeiras; e 3) promover ações com vistas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação.

Os objetivos são corretos, mas caberiam em qualquer situação. É muito importante ir além e enfatizar que este fundo poderá ter um grande papel. A reorganização espacial da produção, a partir do fim dos incentivos, em razão da mudança de critério de cobrança do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), para o conceito de destino puro, como acima indicado, é inevitável. Cidades vazias, fluxos migratórios caóticos e perdas de unidades econômicas são comuns nestes processos de mudança.

Se bem concebido e utilizado, o fundo poderá moderar o processo de mudança, protegendo partes das cadeias produtivas existentes e impedindo graves dramas sociais. Dar o sentido correto ao fundo e planejar sua ação farão toda a diferença.

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ECONOMISTA

Opinião por José Serra

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