A economia brasileira tem apresentado melhorias no campo real, taxa de desemprego em nível bastante baixo, nível de atividade em crescimento e fortalecimento das intenções de investimento. No entanto, há um clima de descrédito. De um lado, as expectativas sobre as taxas de câmbio oscilam e os juros não cedem. De outro, as perspectivas sobre a situação fiscal são cada dia mais negativas e influenciam de forma deletéria todo o ambiente econômico.
Discutir esses aspectos da realidade atual e da estrutura real e financeira da economia é uma tarefa que vai muito além dos limites deste artigo. Assim, gostaria de me ater, aqui, às contas do governo, ao que é conhecido como política fiscal, que tem sido objeto de críticas pela maioria dos analistas econômicos e gerado fortes turbulências no mercado financeiro, a título de que o desequilíbrio tende a colocar a evolução da dívida pública em marcha insustentável.
Temos um arcabouço fiscal razoável, dado pela Lei Complementar n.º 200, de 2023. Embora ainda tenhamos muitas viúvas do teto de gastos, não há dúvida de que a racionalidade econômica é muito superior àquela que nos proporcionava o regime anterior.
Muito além do arcabouço fiscal, não podemos perder de vista que temos uma institucionalidade fiscal que poucos países no mundo possuem. O capítulo da Constituição federal de 1988, que definiu o sistema de planejamento e orçamento, dotou o País de sólidas condições de gestão das contas públicas, e a Lei de Responsabilidade Fiscal proporcionou o ordenamento da execução dessa institucionalidade.
É crucial chamar a atenção para um aspecto que tem papel-chave na deterioração da credibilidade da gestão das contas públicas: as emendas parlamentares. Há muito, governo federal e Congresso disputam uma queda de braço em torno do controle sobre o repasse discricionário de recursos federais a Estados e, principalmente, a municípios. A proposta de lei orçamentária enviada pelo Executivo ao Congresso é analisada e modificada pela Comissão Mista de Orçamento. Depois, é aprovada em plenário e vai à sanção presidencial.
Na tramitação, dentro da Comissão Mista de Orçamento, listagens de emendas de pequeno montante eram incluídas pelos parlamentares, em valores sempre crescentes, retratando a expectativa dos parlamentares em comandar recursos públicos. Vale destacar que, em 2021, as transferências para Estados e municípios por meio de emendas parlamentares superaram aquelas realizadas pelo Executivo.
O ano de 2015 foi um marco nessa disputa. Em meio à fragilidade do presidencialismo e à bagunça institucional, as emendas parlamentares ganharam a condição de impositivas por meio de emenda constitucional. Vale explicar, o Orçamento brasileiro é autorizativo, uma dotação pode estar expressa no cômputo, mas o gasto pode não ocorrer, sendo extinta a intenção de gastar ao final do ano, fazendo com que o parlamentar dependesse de gestões junto ao Executivo para a liberação efetiva dos recursos.
Em 2019, em meio às dificuldades de diálogo político do governo com o Congresso, emergiu a figura do orçamento secreto, composto pelas emendas de relator, em contraposição ao ritual anterior em que cada parlamentar tinha a emenda inscrita na peça orçamentária. Vale ressaltar que esse foi um movimento onde o governo Bolsonaro terceirizou ao Congresso o comando sobre os recursos públicos, em troca de apoio político.
As emendas de relator não seguem as regras de publicidade e transparência da sistemática orçamentária normal, não identificando o nome do parlamentar que solicitou o recurso. O relator do Orçamento negocia quanto cada deputado poderá indicar, mas sem a identificação do deputado ou senador no projeto orçamentário. Uma excrescência sob qualquer ótica.
O Supremo Tribunal Federal (STF) barrou o orçamento secreto, ao final de 2022, restabelecendo o óbvio: todas as dotações devem ter sua autoria, local de destinação e finalidade. Mas os caminhos do rito secreto mudaram e outros tipos de emenda passaram a exercer o papel das emendas de relator, especialmente as emendas de comissão e de bancada.
E não para aí, a inovação recente é a emenda Pix. Trata-se de um mero depósito na conta do beneficiário do recurso federal, geralmente para prefeituras de pequenas cidades. Esses recursos não precisam ter destinação definida, o que torna impossível qualquer procedimento de auditoria do gasto.
A situação criada com o orçamento secreto e as emendas Pix implica a destruição de toda construção institucional que a Constituição de 1988 fundou, trazendo a barganha política em seu nível mais comezinho para o centro da decisão do gasto. Pior, são mais de R$ 50 bilhões em recursos que nem têm como ter sua eficiência mensurada. Manter qualquer tipo de credibilidade fiscal neste quadro é uma impossibilidade.
As posições que o STF assumiu são o mínimo para voltar a alguma normalidade fiscal. Logicamente afetam barbaramente o centro da disputa pelo poder de comandar uma imensa fatia do gasto público. O triste é que tenhamos chegado a essa situação.
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ECONOMISTA
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