Nestas últimas décadas, nem mesmo a mudança tumultuosa da estrutura do mundo a que, atônitos, assistimos pôde cancelar fatos paradigmáticos do passado, particularmente quando redefiniram modos de ser e de pensar a política. Nos anos 1960 ou 1970, para definir desde logo nosso problema, costumava estar na ordem do dia algum tipo de transição ao socialismo, entendido este último, teleologicamente, como a parada final do trem da História.
No Chile de Allende, por exemplo, a aposta era seguir viagem pelo caminho das eleições, do Parlamento e demais instituições que muitos de nós, mal-avisados, chamávamos “burguesas”. O contexto, porém, era o da guerra fria, e para adeptos do “realismo político”, como Nixon e Kissinger, uma segunda Cuba nas Américas era algo impensável, ainda quando viesse não pela “luta armada”, o voluntarioso lema da época. A decisão de derrubar Allende viu-se facilitada pelo seu isolamento tanto no Congresso quanto no eleitorado: a maioria relativa de que dispunha não era suficiente para vencer as dificuldades políticas e econômicas da transição. Para não falar da ferocidade com que a direita militar armava o golpe de 1973, neste fatal mês de setembro – bem ao estilo da época.
Salvador Allende não era um socialista incendiário, assim como, na Itália, Enrico Berlinguer, notável líder comunista, estava longe de o ser. Ao contrário, diante de seguidos ataques à democracia por extremistas de direita e de esquerda, Berlinguer e o PCI puseram-se obstinadamente em defesa da Constituição antifascista de 1948. Naqueles anos, ademais, viviam uma expectativa que jamais se realizaria, a do sorpasso (ultrapassagem) eleitoral, passando à frente da Democracia Cristã. Em relação a esta, especialmente considerando a figura de Aldo Moro, elaboraram uma estratégia leal e generosa, a que deram o nome de compromisso histórico.
Nada de “fagocitar” o partido adversário ou decapitá-lo, mas sim unir forças profundamente enraizadas e buscar convergências que não anulassem as respectivas identidades. Era, na visão de Berlinguer, o caminho real para renovar a sociedade, introduzir elementos de economia programática e enriquecer a democracia a partir de baixo – por que não? –, sem jamais abalar a centralidade do Parlamento.
Como tal, o compromisso histórico fracassou. O assassinato de Moro foi apenas um dos sinais deste fracasso. Placas tectônicas começavam a se mexer poderosamente, inviabilizando qualquer hipótese de “via nacional ao socialismo”. O próprio experimento soviético dava sinais crescentes e irreversíveis de declínio, e Gorbachev chegaria tarde demais. Thatcher e Reagan também iriam sinalizar o fim do consenso social-democrata, propondo e impondo as regras de um capitalismo puro e duro. A queda do Muro e a globalização reformulariam dos pés à cabeça os termos da luta por avanços possíveis, num mundo atomizado pelas políticas neoliberais e privado do horizonte socialista.
No entanto, há algo no compromisso histórico berlingueriano que nos leva a falar dele como de uma ideia reguladora ainda pertinente. Antes de mais nada, a recusa cabal e pertinaz de dividir a sociedade – qualquer sociedade – em duas metades, a de direita e a de esquerda, inserindo-as, ainda por cima, num confronto destrutivo do tipo amigo e inimigo. Encontros programáticos, possíveis e desejáveis em toda situação normal, são simplesmente indispensáveis nos contextos de risco máximo, quando, por uma série de motivos “estruturais” e “superestruturais”, forças que vegetam à margem vêm a ocupar o centro do palco, arrastam massas fanatizadas e comprometem valores civilizatórios básicos.
De fato, este é o caso daquilo que, da Hungria até os Estados Unidos e o Brasil, tem se insinuado sob o rótulo de nacional-populismo. O nacionalismo em questão nega a dimensão global em que se colocam problemas já incontornáveis, como o do clima; e o populismo arremete contra instituições contramajoritárias, em nome de um demos encarnado no homem da Providência. Supostamente acima de tudo e de todos, o demagogo apregoa uma liberdade que desconhece os limites constitucionais que livremente aceitamos. Decerto, o nacional-populismo, que hoje coloca o mundo de ponta-cabeça, prospera sobretudo à direita, mas convém evitar a húbris: há na praça versões à esquerda, que só incautos ignoram.
Um compromisso histórico aggiornato terá, pela natureza das coisas, um sentido mais modesto, mas não menos vigoroso. Para uma força de esquerda que, como no Brasil, esteja à frente do processo, trata-se de incorporar estruturalmente o método democrático e explorar, com paciência, as imensas possibilidades que contém – e não é certo que o tenha feito antes. O pré-requisito é ativar uma dialética viva com todas as forças do campo democrático, incluindo os liberais e os muitíssimos conservadores que desconfiam da sereia nacional-populista. Esta é a prova que enfrentamos agora, mas, no fundo, ela sempre recomeça a cada dia – missão de Sísifo, sem cujo cumprimento os tiranos retornam.
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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL
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