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Tradutor e ensaísta, Luiz Sérgio Henriques escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Turbulência e esperança

Vivemos entre a incompletude radical das soluções locais e a precariedade dos instrumentos multilaterais criados a duras penas

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Frases e reflexões de Antonio Gramsci, um clássico moderno, costumam correr livremente na barafunda das redes sociais, e não por acaso. Uma delas é particularmente expressiva e trata de transições turbulentas, como a que o sardo viveu há cem anos e como a que agora vivemos nós. É quase certo que já tenhamos lido aqui e ali sua definição de “interregno” – um tempo estranho e incerto, nebuloso até, em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Um tempo por isso mesmo povoado de monstros e anomalias políticas. Palavras de fogo, certamente, cuja utilidade presente não é preciso ressaltar.

Naturalmente, para ele a novidade histórica, apesar da sua reconhecida fineza analítica, teria o perfil delineado pelos acontecimentos que se desdobravam desde 1917, ou seja, a ruptura com o capitalismo. Seu paradigma era o de algum tipo de revolução, ainda que severamente danificado pelas dificuldades próprias do Ocidente político e pela emergência de uma enorme reação conservadora – o fascismo, do qual, como é bem sabido, se tornaria prisioneiro.

Paradoxalmente, soltos e dispersos na hipermodernidade, estamos em condição relativamente mais desfavorável. Não podemos nos escorar, nem sequer de modo problemático, numa filosofia da História que garanta futuro radioso. Homens e mulheres de esquerda que abraçaram com convicção a democracia constitucional – e assumem a necessidade de incorporar os valores do liberalismo – veem-se às voltas, na nova trincheira, com recuos e derrotas. A unificação do gênero humano, bem como a compreensão da inter-relação de crises e desafios globais, são realidades que demoram a se impor e não se pode excluir que jamais se imponham de fato.

Vivemos dramaticamente entre a incompletude radical das soluções locais e a precariedade dos instrumentos multilaterais criados a duras penas. Permanece sem solução razoável a contradição entre a mundialização da economia, apesar de todos os passos para trás, e o âmbito nacional das decisões políticas. A História, retirados ao menos parcialmente seus determinismos, mostra-se novamente como uma tarefa em aberto, o que em princípio seria um convite auspicioso à criatividade. No entanto, no mesmo lance ela acaba por atemorizar a imaginação. É que em geral aparece sob a forma de perigos e ameaças inéditos, como a crise climática ou a ruptura que parece anunciar a inteligência artificial.

A revolução conservadora em curso retoma tópicos essenciais daquela outra já secular. Cada Estado-nação, sem excluir os mais poderosos, procura fechar-se em si mesmo, buscando um tempo heroico e uma identidade perdida – e, no mais das vezes, fictícios. A economia política de agora apregoa abertamente a atualidade de tarifas e barreiras comerciais que, segundo comprovada experiência, em outros momentos foram a antessala das guerras propriamente ditas. Neste quadro mesquinho, se algum simulacro de Welfare acaso se realizar, estará na melhor hipótese circunscrito aos pátrios limites, com exclusão de imigrantes e outros elementos supostamente alheios à pureza étnica ou cultural.

Com a segunda presidência Trump, entre as ilusões perdidas está a de que seu primeiro termo não passou de um parêntese casual. Internamente, não é difícil antever a pressão sistemática e deliberada sobre as instituições, abrindo certamente menos a possibilidade de um regime abertamente fascista do que a de uma destas arriscadas situações híbridas que têm assinalado o declínio relativo das democracias liberais. Externamente, para usar uma dicotomia relevante, Donald Trump equivalerá a um abandono das aspirações propriamente hegemônicas do país na ordem global baseada em regras, em benefício de uma visão puramente corporativa, dominada por ganhos econômicos imediatos.

Em tal horizonte corporativo, as alianças orientadas por valores comuns são postas em plano secundário ou desaparecem completamente. A consigna “primeiro a América” impede que se incorporem, no próprio cálculo, interesses e orientações de aliados tradicionais ou que se imaginem políticas de cooperação como as que aconteceram no pós-guerra, a exemplo do Plano Marshall ou das iniciativas para garantir o comércio e a resolução pacífica de conflitos.

O cosmopolitismo entra em crise, o multilateralismo se arruína e não é irrazoável pensar na multiplicação de pequenos Trumps, como os que rondam regularmente a União Europeia e também nuestra América. Isso sem falar na rede de autocratas em guerra permanente contra os direitos humanos, a universalidade do voto e as instituições responsáveis pelo controle do poder. Numa palavra, a rede mobilizada contra o legado das revoluções modernas, o que exige cada vez mais o firme compromisso histórico entre liberais e socialistas.

Nota: repetindo a fala do carpina para o retirante, no poema de João Cabral, não temos resposta às questões acima. No entanto, para os de boa vontade é tempo de renascimento. É tempo, pois, de celebrar a vida, que nunca deixa que se rompa o fio severino da esperança, “belo como um sim numa sala negativa”.

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TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Opinião por Luiz Sérgio Henriques

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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