No já tenso debate que envolve o direito à propriedade de produtores agrícolas e a demarcação de terras indígenas, terreno no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) legisla e o Congresso confronta, só faltava mesmo um piromaníaco. Agora não falta mais. Num de seus ruidosos encontros realizados na COP-28, ao ser cobrado por representantes da sociedade civil por suas promessas de campanha acerca da defesa dos povos indígenas, o presidente Lula da Silva saiu-se com esta, ao falar do seu veto a trechos do projeto de lei que fixa um marco temporal para demarcação das terras indígenas, veto este que pode ser derrubado pelo Congresso: “A gente tem que se preparar para entender que ou construímos uma força democrática capaz de ganhar o Poder Legislativo, o Poder Executivo, e fazer a transformação que vocês querem, ou vamos ver acontecer o que aconteceu com o marco temporal. Querer que uma raposa tome conta do nosso galinheiro é acreditar demais”.
Congressistas reagiram, como seria de esperar. A reação mais incisiva coube à Frente Parlamentar do Agro, ao divulgar nota na qual argumenta que as falas de Lula “criminalizam” o Legislativo e amplia ainda mais o clima de animosidade e confronto – no campo, na política e no debate jurídico. Não se tratou, contudo, de uma reação limitada ao agronegócio. Para alguns parlamentares, foi a demonstração de um “viés autoritário” do presidente. Para outros, uma tentativa de “criminalização” da produção rural. Para muitos, inclusive para este jornal, uma fala desrespeitosa sob qualquer ótica. Independentemente de qual lado se está nesta história, nada mais inconveniente do que um presidente disposto a jogar gasolina no fogo em vez de trabalhar para extingui-lo.
Como se sabe, a discussão do marco temporal tornou-se o epicentro de um grande conflito entre Legislativo e Judiciário. Se acolhida a tese que está na Constituição e no entendimento do próprio Supremo, manifestado em julgamento realizado em 2009, povos indígenas só poderiam reivindicar a demarcação de terras que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Carta Magna. Em setembro último, porém, o STF reviu a própria jurisprudência e rejeitou a tese. Uma semana depois, o Senado se apressou a votar um projeto de lei, que já havia sido aprovado na Câmara, que explicita o marco temporal. Com o conflito instalado, em outubro o presidente Lula preservou 11 dos 13 dispositivos do projeto de lei, mas vetou o coração do texto, justamente aquele que estabelece 1988 como referência para o direito à terra pelas comunidades indígenas. Agora uma parte considerável do Congresso trabalha para derrubar o veto – e, pela sua declaração, Lula sabe que são grandes as chances de isso ocorrer.
O enredo está longe de chegar ao fim, sobretudo se depender do presidente. O que chama a atenção, neste novo capítulo, é o aparente esforço de Lula para ampliar o confronto. Numa só tacada, mira quatro diferentes alvos. Primeiro: tenta esquivar-se da cobrança que recebeu de representantes da sociedade civil, amuados pelo que consideram descumprimento de suas promessas e lentidão no trato de demarcações de terras indígenas. Em situações assim, sabemos, a raposa presidencial costuma buscar os culpados de sempre – isto é, as “elites”. Segundo: reafirma a lógica binária que costuma dividir o mundo em dois lados – um bom e um mau. Terceira: desabona o Congresso, em cujas mãos o governo se encontra em pautas relevantes. Quarta: volta a usar fóruns públicos internacionais para confrontar grupos de interesse legítimos do seu país e criminalizar o agronegócio.
Na terra arrasada desse conflito, o agronegócio pode ter ainda muito a avançar em práticas sustentáveis, mas o debate sobre o marco temporal inspirou polarizações repletas de excessos por todos os lados. Se o STF tomou uma decisão contra si mesmo e o Congresso de fato o confrontou indevidamente, o presidente Lula – preocupado, como sempre, consigo mesmo – oferece sua inspiradora contribuição para inflamar o debate. Há quem enxergue em Lula um craque no difícil jogo da negociação política. No marco atemporal da insensatez, o episódio da raposa petista só revela, no máximo, o quanto ele mal disfarça a sua incapacidade de cuidar do próprio galinheiro.