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Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Sem eleições limpas, a democracia sofre

Candidatos há que costumam fraudar eleições mediante formas ‘discretas’: mentiras, fuga do debate público, ausência de programas e intenções

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Por Marco Aurélio Nogueira

Eleições são decisivas para o bom funcionamento da democracia. Por meio delas, mostra-se a qualidade da representação, a resiliência da estrutura institucional e o desempenho governamental. Governantes são premiados ou castigados pelos eleitores quando buscam sua reeleição. Políticos insurgentes podem ganhar o palco da política quando reúnem bons votos. Eleitores extravasam nas urnas suas esperanças, seu descontentamento e sua desconfiança nos políticos.

Diferentemente da Venezuela e de outras ditaduras praticantes do autoritarismo eleitoral, o Brasil tem convivido bem com as eleições. Elas foram suspensas e reprimidas durante a ditadura militar, entre 1968 e 1972, mas a queda do regime ditatorial se deu por via eleitoral, mediante a qual preparou-se o caminho para que o regime fosse se desfazendo, primeiro a partir das bordas e, depois, em seu sistema nervoso central.

Com os parâmetros fornecidos pela Constituição de 1988, as eleições se sucederam regulamente no País. O voto permaneceu secreto, inviolável, auditável, acessível a todos a partir dos 16 anos. Vencedores tomaram posse e os incumbentes derrotados transmitiram os cargos sem maiores acidentes, exceção feita à passagem Bolsonaro-Lula em 2023. O sistema institucional, com seus freios e contrapesos ajustados às coalizões multipartidárias, moderou as crises que ocorreram ao longo do tempo.

Eleições sempre serão processos complexos. Sujeitas a muitos acidentes de percurso e determinadas tanto pelo sistema em que se inserem quanto pelos humores dos cidadãos e pelo estado da sociedade. A proliferação das redes sociais e das tecnologias de informação e comunicação, por exemplo, mudaram o modo como se organizam as campanhas e se busca o voto, implicando grandes modificações na dinâmica eleitoral. Candidatos de “novo tipo” passaram a abusar das redes para disseminar mentiras e ataques aos adversários, criando arenas manchadas por sujeiras que se espalham de forma tóxica, envenenando o eleitorado e alterando a qualidade das disputas políticas. No Brasil de 2024, caso exemplar é do candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal, um oportunista que emergiu como o bufão da hora para bagunçar as eleições na cidade.

Algumas figuras desse tipo são mais histriônicas e vazias, outras, menos. Nos EUA, Donald Trump representa bem a espécie, criando seguidas arapucas para tentar macular os adversários, perturbar as disputas presidenciais e iludir o eleitorado. Todos têm o mesmo foco: fazer das eleições uma arena de disputas medíocres, demagógicas e virulentas.

Os candidatos bufões são aventureiros. Buscam um lugar ao Sol por meio de agressões e propostas mirabolantes, sem nexos com a realidade e voltadas exclusivamente a embaralhar as disputas eleitorais. Querem-se outsiders, como se não tivessem nenhuma relação com “tudo o que está aí”. São invariavelmente contra a política. Prestam enorme desserviço: emporcalham o trâmite eleitoral, fragilizam os partidos, fomentam o populismo mais rasteiro. Põem em risco, assim, a própria democracia e sua institucionalidade. Além do mais, disseminam ódio, raiva e desconfiança entre os eleitores, sequestrando um precioso componente da vida democrática.

Eleições também podem ser abertamente fraudadas, como ocorreu neste ano na Venezuela. Fraudes ostensivas se materializam na manipulação de cédulas e urnas, na intimidação dos eleitores, na repressão às manifestações e na perseguição aos que se opõem aos governantes autoritários, sempre desejosos de dilatar seu tempo no cargo. Nicolás Maduro tem feito tudo isso ao mesmo tempo, e pode ser tomado como um case de autoritarismo eleitoral: ao fim de pleitos viciados, sem controle e sem transparência, se autoproclamou vencedor.

Fraudes diretas e desavergonhadas desprezam regras do jogo e diálogos democráticos. São organizadas para fazer a festa e entronar ditadores. São uma farsa, que desvirtua e cancela a democracia, por mais que o povo seja chamado às urnas.

Candidatos há que costumam fraudar eleições mediante formas mais “discretas”: mentiras, ataques pessoais, campanhas de difamação e autopromoção, fuga do debate público, ausência de programas e intenções. Podem não rejeitar as regras do jogo, mas pouco contribuem para qualificar as eleições, a política e a democracia. Ajudam a converter as disputas numa espécie de circo em que se desperdiça tempo e se intoxica o eleitorado.

O fato é que a democracia, por sua complexidade, sofre quando as eleições perdem o senso da História, da ética e da política. Disputas eleitorais congestionadas de atitudes distantes do bom senso continuarão a ocorrer, em que pesem todo o esforço cívico e toda a eficácia da estrutura institucional. A teatralidade inerente à política possibilita e incentiva isso.

Cabe aos democratas consistentes – de esquerda, liberais, de centro ou conservadores – atuar para reduzir o espaço daqueles que procuram manipular eleições e impedir que elas produzam resultados que reforcem e qualifiquem a democracia.

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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

Opinião por Marco Aurélio Nogueira

Professor titular de Teoria Política da Unesp

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