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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A inconstitucional e vergonhosa anistia

A vergonhosa PEC 9/2023 perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente

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A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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