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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Arranjo inconstitucional

No caso das Emendas Pix, o STF abre mão da função precípua de guardião da Carta ao desistir de declarar a inconstitucionalidade de norma inconstitucional

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A Constituição federal cria um sistema escalonado de leis por via das quais o governo estrutura a alocação de recursos para a execução de plano de ação. Assim, conforme os artigos 165 e seguintes da Constituição, no topo do sistema está o Plano Plurianual, por meio do qual se estabelecem as diretrizes e os objetivos da administração, de forma regionalizada. Segue-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias, fixando prioridades, em consonância com a trajetória sustentável da dívida pública e orientando a elaboração da Lei Orçamentária Anual, que deve ser compatível com o Plano Plurianual.

A fragilização do Poder Executivo em 2015 levou à edição da Emenda Constitucional n.º 86, estatuindo emendas individuais ao Orçamento, dotadas de execução obrigatória, conforme o § 11 do art. 166 da Constituição. Pela Emenda Constitucional n.º 100 de 2019, criavam-se também, como obrigatórias, as emendas de iniciativa de bancada de parlamentares de um Estado (§ 12 do art. 166 da Constituição).

O Legislativo apropriava-se de parcela do Orçamento, instalando governo paralelo com as emendas de comissões permanentes de ambas as Casas e as emendas do relator. Estas últimas, decorrentes da Lei n.º 13.898/19, de iniciativa de Bolsonaro, consistem em emendas do relator-geral que promovam acréscimo em programações constantes do projeto orçamentário ou inclusão de novas programações.

Como se vê, as emendas do relator não se limitavam a corrigir omissões, mas promoviam acréscimos, sem transparência e compatibilidade com a programação da ação administrativa, alcançando em 2022 mais de R$ 16 bilhões, atendendo a interesses de parlamentares em combinação com o relator, com ofensa aos princípios da publicidade e da moralidade e subvertendo a lógica do sistema de repartição dos recursos orçamentários, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de 2022.

Em suma, fatia considerável do orçamento discricionário, gerida pelos ministérios, passou para o Parlamento: em 2019, as emendas parlamentares representavam 5,4% do gasto com despesas discricionárias do governo, e em 2022 passaram a ser 24% do valor de tais despesas.

O STF não decretou a inconstitucionalidade das emendas do relator, mas sim a inadmissibilidade da forma secreta, exigindo que houvesse transparência, o que não foi observado pelo Congresso, que passou a utilizar o disposto no art. 166-A da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional n.º 105 de 2019, de iniciativa do PT. Segundo esse artigo: “As emendas individuais impositivas apresentadas ao projeto de lei orçamentária anual poderão alocar recursos a Estados, ao Distrito Federal e a municípios por meio de transferência especial, com o repasse de recursos diretamente ao ente beneficiado, sem celebração de convênio”. Dispensada qualquer prestação de contas, a verba é repassada ao Estado ou município e destinada a programas à escolha destes.

Estas emendas, designadas Emendas Pix, foram suspensas por liminar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) interpostas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) – respectivamente, Adin 7688 e Adin 7695. Segundo a PGR, as Emendas Pix contrariam a separação de Poderes, os princípios da moralidade e publicidade e a competência fiscalizatória do Tribunal de Contas sobre os recursos repassados, solicitando que se declare inconstitucional o art. 166-A, I § 2, 3 e 5 da Constituição.

As Emendas Pix não se encaixam no Plano Plurianual nem nas Diretrizes Orçamentárias, pois a aplicação dos valores fica ao alvitre dos Estados e dos municípios. Portanto, a inconstitucionalidade não está apenas na falta de transparência, mas na pulverização de recursos em bens e serviços alheios à programação governamental.

Em seguida, contudo, o STF abre mão da função precípua de guardião da Constituição ao desistir de declarar a inconstitucionalidade de norma inconstitucional, promovendo conciliação do inconciliável graças ao cumprimento de condições para ser aceitável a afronta à Constituição.

A Suprema Corte tenta superar a inconstitucionalidade pelo atendimento dos requisitos excepcionais da transparência e da rastreabilidade (art. 163-A da Constituição), ao mesmo tempo que admite ficarem estas Emendas de Transferência Especial, Emendas Pix, mantidas, com impositividade, observada a necessidade de identificação antecipada do objeto, a concessão de prioridade para obras inacabadas e a prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União.

É um arranjo para evitar crise entre Poderes, um jeitinho ao preço de renunciar à sua missão constitucional, pois deixa de declarar a inconstitucionalidade do art. 166 A, I, § 2, 3 e 5 da Constituição, que seria decidida no exame de mérito, agora prejudicado pela admissão, em sala de conciliação, de acordo mediante o qual se mantém a eficácia do art. 166-A, sujeita a algumas condições, como assinalado.

Com receio de açular o confronto entre Poderes ao reconhecer a inconstitucionalidade, acaba-se por legitimar inusitado desvirtuamento do Orçamento pelo Legislativo.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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