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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Cultura do horror

Como se normalizou o descaso para com o processo democrático, não se reagindo à prática da violência política, tanto nos EUA como aqui?

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A sociedade civil organizada bem vislumbrou a vocação autoritária de Jair Bolsonaro ao longo do exercício de seu mandato. Desde 2020, diversos e relevantes setores sociais denunciaram o golpismo, reafirmando os valores da democracia.

Em muitos manifestos anotava-se estar a Nação exausta do clima artificial de confronto, proclamando-se: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”.

Bolsonaro veio empreendendo intensa luta contra as urnas eletrônicas, alcançando o cume no ato de 7 de setembro de 2021, na Avenida Paulista, no qual chegou a dizer que não cumpriria ordem da Justiça Eleitoral e “só sairia da Presidência preso ou morto”, além de que sem voto impresso “não haveria eleições”.

Estava antes preocupado em tisnar e anular a futura eleição, premonitoriamente vista como perdida, do que em ganhar o pleito.

O tosco capitão presidiu um governo pífio, caracterizado por clima de intenso desassossego. Contra Bolsonaro tramitavam inquéritos policiais por desvio de bens recebidos pela Presidência e por falsificação de atestado de vacina. Assim mesmo e apesar de significativos atos em favor da democracia, com setores representativos da sociedade denunciando o golpismo, Bolsonaro, no segundo turno das eleições, recebeu 58 milhões de votos.

Investigação da Polícia Federal, concluída em meados do mês passado, indicou ter sido Bolsonaro líder de conspiração na execução de golpe de Estado, incluindo a hipótese de assassinar Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes.

Malgrado todas essas novas circunstâncias altamente comprometedoras, que o tornam traidor da Constituição que jurara respeitar, levantamento realizado pela Paraná Pesquisas, sobre possíveis disputantes da Presidência em 2026, indica que Bolsonaro, mesmo inelegível, tem 37,6% das intenções de voto e Lula, 33,6%.

Em suma: constata-se como evidência a pouca importância dada à liberdade política e aos direitos humanos ao se admitir, como normal, o uso da força como forma “legítima” de assunção ao poder, com a aceitação das prováveis e graves consequências de uma intervenção militar.

Com efeito, como amplamente divulgado, a trama golpista previa a destruição dos opositores, bem como o desencadear de guerra civil e a necessidade de campo de prisioneiros ao estilo de Auschwitz, como chegam a mencionar.

Nos Estados Unidos, Donald Trump foi condenado por ter falseado como gasto de campanha valor pago como “indenização” a “artista” pornô, para mantê-la em silêncio acerca da relação entre ambos. A sentença ainda não foi publicada, mas há condenação imposta. Tinha outros processos criminais contra si, a começar pelo instaurado em vista de sua participação no incitamento à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Mesmo com esse quadro de graves persecuções penais, venceu as eleições de novembro, tendo maioria dos votos e dos delegados.

O surpreendente resultado da Paraná Pesquisas e a vitória do candidato republicano nos Estados Unidos incitam a elucubrar, buscando saber que meios de informação alimentam as mentes dos adeptos de Bolsonaro e de Trump. Como se forjaram tais opiniões? Como se normalizou o descaso para com o processo democrático, não se reagindo à prática da violência política, tanto nos Estados Unidos como aqui?

Uma das vias de compreensão está na hipótese de essa significativa parcela da população, que opta pelo desprezo à democracia e aos direitos humanos, ser movida por meios de comunicação não convencionais, em flashes transmitidos com urgência, para não haver o risco de a razão os vir a prejudicar.

Então, exploram-se emoções, frustrações, expectativas de realização imediata junto a pessoas que “vogliano tutto e subito”, que reputam inalcançáveis por culpa do “permissivismo democrático”.

A fonte dessa nova cultura do horror encontra-se em influenciadores, cujas páginas e mensagens, no Instagram, X, Facebook, ou em podcasts de larga difusão, são destituídas de conteúdo, apresentando respostas prontas e simplórias carregadas de lugares-comuns e de rancor que operam como panaceia aos problemas concretos da sociedade.

No campo político esses meios não tradicionais de comunicação permitem mensagens raivosas e ingenuamente esperançosas de mudanças. Criam-se nichos, cujos partícipes são realimentados em suas rígidas convicções.

O espírito antidemocrático viceja e denunciá-lo não basta, pois muitos estão insensibilizados, graças a mensagens que esmorecem escrúpulos e dilemas morais diante da violência política, formatados que estão nas e pelas redes sociais, onde tudo se admite em nome de uma falaciosa “liberdade de expressão” que, tal como praticada pelos divulgadores do ódio, destruirá a liberdade.

A atmosfera antagonista esgarça a razão: instala-se sem pudor o desprezo por quem seja diferente, tachado de inimigo, com a ignomínia ganhando tranquila guarida.

Há uma tarefa imensa a ser empreendida de reeducação democrática, com o desafio de impedir a disseminação da cultura do horror nas mídias sociais.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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