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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Discurso revelador

No domingo passado, ‘pobres coitados’ foram instrumentalizados, como massa de manobra, para satisfação da ambição política de um mito de pés de barro

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As palavras de Jair Bolsonaro no domingo passado, na Avenida Paulista, apresentam três aspectos merecedores de realce.

A tática bolsonarista consiste em juntar pessoas não a favor de algum programa ou projeto, mas sim contra algo configurado como ameaça, unindo desconhecidos por meio do medo de desgraça iminente. Tal se verifica na charla de Bolsonaro na reunião ministerial de 5 de julho de 2022, quando, em tom agressivo, disse: “Eu peço todo dia: não deixe o povo experimentar o que é comunismo, p**ra! Meu Deus, não deixe o povo experimentar o comunismo”.

Assim, sob o mote de não ser possível haver cristão de esquerda, Bolsonaro criou clima necessário a emocionar seu ministério, perguntando se é isso que desejam. Concita, então, todos a cerrar fileira para impedir a instalação do comunismo, pois a esquerda quer a liberação das drogas, a homossexualidade e o aborto.

Esta mesma exploração da crendice popular deu-se, também, no discurso de domingo passado, ao dizer: “Nós não queremos o socialismo para o nosso Brasil. Nós não podemos admitir o comunismo em nosso meio. Nós não queremos ideologia de gênero para os nossos filhos. Nós queremos respeito à propriedade privada. Nós queremos o direito à defesa à própria vida. Nós queremos o respeito à vida desde a sua concepção. Nós não queremos a liberação das drogas em nosso país. Mas, para isso, nós devemos trabalhar todo dia dentro de casa, no trabalho, com os vizinhos e com os amigos”.

A mostrar ser a pauta de costumes a ideia-força catalisadora da multidão que acorreu à Avenida Paulista, tome-se a entrevista dada ao UOL por três senhoras de classe média que carregavam bandeira de Israel. Indagada a razão de portarem tal bandeira, uma delas respondeu: “Porque nós somos cristãs como Israel. Nós não somos socialistas, não somos comunistas e Israel está com nós” (sic).

O segundo aspecto a ser destacado está na referência feita ao decreto de instalação de Estado de Defesa encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Bolsonaro sempre negara conhecer o decreto, malgrado conste ter ele revisado o texto. No discurso de domingo, no entanto, admite ter ciência do documento. Justifica, contudo, que tanto o Estado de Defesa como o Estado de Sítio requerem que seja ouvido o Conselho da República, sendo tais medidas excepcionais submetidas ao Parlamento, porém nada foi feito.

O portal Congresso em Foco publicou o decreto achado na casa de Anderson Torres, em cuja ementa consta: “Decreta Estado de Defesa, previsto nos arts. 136, 140 e 141 da Constituição federal, com vistas a restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e ilegais levadas a efeito pela Presidência e membros do tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral presidencial de 2022″.

Adotar-se-ia a medida excepcional para restabelecer a lisura do processo eleitoral presidencial após a realização das eleições. Antes, acreditara em sua vitória, com a PEC da Bondade. Porém, proclamado Lula vencedor, Bolsonaro chora e se isola. No entanto, aí vieram, então, os acampamentos à frente dos quartéis, a invasão da Polícia Federal em 12 de dezembro, a tentativa de explosão de caminhão no aeroporto de Brasília. Criava-se, portanto, a necessidade de recompor a ordem pública ameaçada em face das ilegalidades praticadas no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral. Para isso, instituía a Comissão de Regularidade Eleitoral, sob direção do Ministério da Defesa, para apurar o processo eleitoral.

O fato de ter revisado tal documento, mesmo que não tenha avançado em concretizar a medida, constitui dado indicador de sua intencionalidade, de inconformismo que se casa com as contínuas acusações falsas levadas a efeito contra o TSE ao longo de 2022 e que desembocam na invasão dos prédios dos Três Poderes, à espera da vinda dos militares. Ainda hoje, graças a essa ladainha, 88% dos manifestantes acham ter Bolsonaro ganhado a eleição, segundo pesquisa da Universidade de São Paulo (USP).

O último aspecto relevante do discurso está na proposta de anistia. Em julho de 2023, o deputado do PL Ubiratan Sanderson propôs projeto de lei visando a anistiar os condenados por infração eleitoral. O mesmo foi feito no Senado pelo senador Ciro Nogueira, ambos visando a anular a inelegibilidade de Bolsonaro.

Agora, o ex-presidente pede ao Congresso que anistie todos os responsáveis pela invasão dos prédios dos Três Poderes, a quem chama “estes pobres coitados que estavam lá no 8 de janeiro de 2023″.

Bolsonaro busca anistiar todos, inclusive si próprio, “para que seja feita justiça em nosso Brasil”. A finalidade pretendida por Bolsonaro foi revelada por seu filho senador em entrevista ao Estadão, admitindo buscar-se, com o evento da Avenida Paulista, pressionar a edição de anistia para livrar seu pai.

No domingo passado, outros pobres coitados foram instrumentalizados, como massa de manobra, para satisfação da ambição política de um mito de pés de barro.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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