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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em proteção da verdade

Exemplos justificam que, no vazio legislativo, o TSE tenha vindo a proibir abusos prováveis comprometedores da legitimidade das eleições

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A ministra Cármen Lúcia assume segunda-feira a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e é sua preocupação principal prevenir e reprimir as fake news, mormente com o uso da inteligência artificial (IA). Por ora, há frágil controle de conteúdo na internet, no art. 19 do Marco Civil (Lei n.º 12.965/2014). Dois projetos sobre a matéria esperam votação: o projeto n.º 2.630, aprovado no Senado, está paralisado na Câmara dos Deputados; e o projeto n.º 2.338 do Senado, sobre sistemas de inteligência artificial, encontra-se na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil, sendo relator o senador Eduardo Gomes.

Na ausência de disciplina acerca do controle de conteúdo, e por delegação legislativa (art. 105 da Lei n.º 9.504/1997), coube ao TSE editar normas de caráter geral. E assim o fez por via da Resolução n.º 23.732/2024, acrescendo dispositivos à Resolução n.º 23.610/2019, sancionando o uso abusivo dos meios de comunicação social, até mesmo com cassação da candidatura ou do mandato.

Recorro a dois recentes exemplos que mostram não haver limites para exploração política, ao se valerem até da calamidade pública para a disseminação torpe de mentiras. Lembro as fake news relativas à expulsão, pelo prefeito de São Leopoldo (RS), do auxílio enviado por cidades do litoral norte de São Paulo, filmando caminhonetes paradas, com barco no teto, denunciando com indignação terem sido rejeitadas as ajudas. Pura mentira: aqueles voluntários, após dez dias de trabalho, estavam retornando, exaustos, para serem substituídos, como constatou o Estadão Verifica.

Outro vídeo difundido nas redes sociais atingiu o prefeito de Canoas (RS), filmando num ginásio uma pessoa sendo escorraçada a cadeiradas. Afirmava-se, falsamente, que se tratava do prefeito, flagrado colocando adesivos de Lula da Silva em sacos de doações recebidas, e sendo expulso sob xingamentos pelos abrigados revoltados. Na notícia, pede-se o impeachment do prefeito e de Lula. Verificou-se que esse vídeo retratava assembleia do Sindicato dos Servidores Públicos das Secretarias de Educação dos Municípios do Ceará, publicado em 4 de abril pelo Diário do Nordeste (checamos.afp.com/doc.afp.com.34RR3MQ).

Como se vê, em momento sensível, busca-se provocar reação imediata de repulsa a prefeitos, a ser admitida sem reflexão.

A mentira sempre esteve presente em momentos cruciais, como no incêndio do Reichstag, o Parlamento alemão, atribuído por Hitler aos comunistas, para impor a lei que lhe dava plenos poderes. O diferencial hoje está na escala alcançada pela difusão do falso e do ódio, a enganar a massa da população, conduzindo a se legitimar, por eleições em escolha viciada, um governo alicerçado na farsa.

Os exemplos citados justificam que, no vazio legislativo, o TSE tenha vindo a proibir os abusos prováveis comprometedores da legitimidade das eleições. Pelo art. 9.º-B da alterada Resolução n.º 23.610/2019, impõe-se a obrigação de aviso claro do uso de IA na propaganda eleitoral, ou seja, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons.

No caput do art. 9.º-C, veda-se a difusão de conteúdo fabricado ou manipulado para divulgar fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados, com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral. Em especial, no parágrafo 1.º proíbe-se o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake).

No art. 9.º-D e seus parágrafos, é vedada ao provedor a comercialização para veiculação de fato notoriamente inverídico que possa atingir a integridade do processo eleitoral. Ao provedor também se impõe, ao saber de conteúdo ilícito, tomar providências imediatas para cessar o impulsionamento. Além do mais, a Justiça Eleitoral poderá determinar que o provedor de aplicação veicule, por impulsionamento e sem custos, conteúdo informativo que elucide fato inverídico.

Como consequência desses preceitos, os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos, durante o período eleitoral, de forma a pôr em risco o Estado de Direito, a integridade do processo eleitoral ou gerar discriminação por racismo, homofobia ou ideologia nazista.

Destaco os deveres impostos aos provedores no exercício de sua função social, como meio pelos quais se viabiliza a informação, tendo, portanto, a obrigação de não divulgar notícia sabidamente falsa e de desfazer as mentiras que veio a constatar e elucidar a verdade relativa ao fato. Relevante o cuidado de evitar o engano decorrente do uso da inteligência artificial ao exigir o aviso da utilização desse recurso. Merecedora de aplauso e de respeito a proteção da verdade pretendida pelo TSE.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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