Em memorável página de seu Principi del Processo Penale, Francesco Carnelutti descreve a grandeza da tarefa de julgar. Lembra dispositivo do então vigente Código de Processo Penal italiano segundo o qual deve o juiz recolher-se à sala do conselho, separada da de audiência, onde se encontrará só para, sem outros rumores que não os do próprio pensamento, fazer neutra e imparcial avaliação das provas.
Este necessário silêncio, contudo, está em grande perigo em vista da força da voz das redes sociais.
Em instigante livro, a ser publicado no Brasil, Giustizia Mediatica, Vittorio Manes, catedrático de Direito Penal de Bolonha, revela os comprometimentos do ato de julgar, agora sujeito aos impactos da espetacularização. O acusado, que deveria presumir-se inocente, é tido como culpado antes do julgamento.
O fenômeno não é novo, mas hoje ganha intensidade, quando a televisão e os internautas se transformam em julgadores, substituindo juízes, e ressoa por todos os cantos das salas dos tribunais, com elevados decibéis, a sentença antecipada da grande imprensa e das redes sociais.
Como alerta Manes, a condenação midiática opera de imediato seus efeitos, prescindindo da prova e do contraditório no tribunal público das redes sociais ou da imprensa sensacionalista. Por isso, postula que o conceito de publicidade e os seus limites sejam adequados aos valores do Direito, de um lado, a liberdade de expressão e, de outro, a reputação individual e a garantia de julgamento justo.
Para que o indiciado não seja “sacrificado no altar midiático”, deve-se permitir apenas a divulgação, relativa a fato em julgamento, do estritamente necessário para fins informativos, sem afrontar a presunção de inocência. O relevante é viabilizar a mais célere neutralização das informações de culpabilidade antecipada e restaurar a repristinação da dignidade pessoal, quando sobressaia eventual absolvição.
A Convenção Europeia de Direitos Humanos estatui como garantia, no art. 6.º, o direito a julgamento imparcial. No confronto entre tal garantia e a liberdade de expressão, esta deve ser restrita, segundo o art. 10.º, inciso 2, para “assegurar a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Na Itália se impede a apresentação do indagado como culpado antes da verificação definitiva da responsabilidade penal. Pelos decretos leis n.º 106, de 2006, e n.º 188, de 2021, a difusão de informação sobre procedimentos penais é consentida apenas quando for necessária para a persecução penal ou atenda ao interesse público.
Na Áustria, um jornalista foi processado com base no Austrian Media Act por ter apresentado provas de corrupção de ex-ministro das Finanças, sendo, por isso, presumível ser condenado. Para a lei austríaca, é crime manifestar a probabilidade de condenação ou validar provas de modo a influir no resultado final da causa. O jornalista recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, para a qual, no entanto, a lei não afrontava a liberdade de expressão, pois protege a autoridade e a imparcialidade do Judiciário.
No Direito inglês se prevê como infração, passível de pena de prisão, a prática de qualquer ato que tenda a constranger juiz ou tribunal, para garantia de processo imparcial e para que os jurados não cheguem ao julgamento com ideias preconcebidas.
Creio não caber criminalizar a manifestação de pensamento, por mais veemente que sejam, nos meios de imprensa tradicionais ou na internet, as notícias sobre o crime em julgamento. Contudo, deve-se, sim, diante da existência de reiterada divulgação sensacionalista, com potencialidade para comprometer um julgamento justo, buscar minimizar os danos daí advindos.
Para tanto, os órgãos de imprensa e as grandes plataformas devem, obrigatoriamente, ter um código de conduta orientador do tratamento relativo a fatos objeto de processo judicial, a serem comentados da forma mais objetiva, sem apresentar como única via a culpabilidade do autor da conduta.
Em complemento, deve haver dispositivo legal que garanta ao prejudicado, em vista de reiteradas notícias de sua culpabilidade, o direito de resposta. Este se destinaria unicamente a alertar os destinatários da notícia sobre a existência de campanha que compromete a realização de juízo imparcial, sem entrar na discussão das provas acerca da inocência, ou não, do suspeito ou acusado. O direito de resposta deve deixar consignada a existência de um julgamento midiático antecipado, concitando a que o juízo afaste a presunção de culpabilidade, para que, livre de preconceitos, se elabore a decisão.
Tanto os órgãos de imprensa como as plataformas devem, além de atender com urgência ao pedido de direito de resposta, estar sujeitos à determinação judicial de restringir o conteúdo das notícias ao modo mais objetivo, de forma a não influenciar a imparcialidade do juízo.
O desrespeito à ordem judicial torna passível eventual ação de responsabilidade civil. Assim, busca-se com equilíbrio compor o direito de informar e de ser informado com o interesse de julgamento imparcial.
*
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.