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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Não há dois Brasis

Que Lula, com sua experiência, saiba, além de governar, conciliar esta nação conflagrada pela direita populista.

Por Miguel Reale Júnior

No Palácio da Alvorada, durante dois dias Jair Bolsonaro percorreu corredores, solitário, desvairado, esperando a intervenção não dos militares, mas dos deuses para confirmar ser ele um mito de pés firmes, que salva o País das garras do maléfico. Mas, na verdade, Bolsonaro não passa de um blefe, de um mito de pés de barro, que iludiu quase metade da população, mulheres e homens crédulos, atemorizados hoje, como nos antigos tempos da guerra fria, diante do perigo do “comunismo”. Essa ameaça imaginária ocorreu, mas há outros ingredientes a serem analisados.

Lula venceu não o Bolsonaro governante e pessoa inconsistente, mas o antipetismo. Quais as razões para estar tão incrustada na sociedade, principalmente nas classes média, B e C, a ojeriza ao PT? A maior parte dos mais de 58 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro não o fez por acreditar ter sido ele um bom presidente, com ideias claras corretamente apresentadas à Nação. Milhões de pessoas não votaram no perverso Bolsonaro, que defendia a vacina só para o Faísca, seu cachorro: votaram contra o PT.

Cabe, então, reiterar a pergunta: por que tanta rejeição ao PT?

Em 1986, em debate com Francisco Weffort, na época secretário-geral do PT, disse frase depois atribuída a Brizola, de ser o PT a UDN de macacão. O udenismo caracterizou-se no confronto a Getúlio com forte discurso ético, conduzido por eminentes bacharéis, que integravam a chamada “banda de música”, composta, por exemplo, pelos juristas Afonso Arinos, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso e Prado Kelly, sob a liderança do orador Carlos Lacerda. Se a UDN timbrava pela ênfase na moralidade, sendo o partido dos bacharéis, o PT era o partido oriundo do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, que a todos patrulhava e denunciava pregando a ética na política ao longo dos anos 80 e 90.

Com Lula na Presidência em 2002, houve um bom governo, sem trazer qualquer perigo de implantação do socialismo, como hoje se busca atemorizar os ingênuos, mas que chafurdou na corrupção, seja no mensalão, seja depois, a partir do final do segundo mandato de Lula, no petrolão, que as delações e provas técnicas e documentais não permitem desmentir. Ocorreu o que de pior pode suceder em política: o reconhecimento da traição ao ideário proclamado, ou seja, o partido que apregoava a moralidade deixou-se dominar pela imoralidade. Primeira grande frustração.

A segunda grande frustração veio no governo Dilma, no qual se desfez o avanço ocorrido nos planos econômico e social do governo Lula, provocando a maior recessão de nossa história, com perda da confiança, em razão do falseamento das contas públicas, e queda vertiginosa do PIB, com aumento do desemprego, ao que se somou a omissão no controle do saque à Petrobras. A promessa de crescimento foi substituída pelo empobrecimento nacional. Essa é a segunda frustração, que atingiu em cheio as classes C e B.

Mas, infelizmente, essas decepções com o PT fizeram grande parte da população cair no canto de sereia de um tosco capitão, admirador da tortura, político sem partido e sem propostas, que soube se utilizar, como populista, da exploração, por via das redes sociais, dos ressentimentos existentes, incentivando a polarização e o ódio.

A sociedade adoeceu sob o domínio do discurso da raiva e da contraposição a um inimigo imaginário, para, sob força hipnótica, acreditar em mentiras de Bolsonaro na campanha contra as instituições democráticas que poderiam frear suas aventuras autoritárias. A população, por obra desse feitiço, esqueceu a desumanidade presidencial em face da covid-19 e a corrupção na cooptação do Congresso via orçamento secreto. A sociedade, revoltada com a corrupção do PT, no entanto, não se espantou com a aquisição de 51 imóveis pelo clã bolsonarista com dinheiro vivo, anestesiada pela manipulação de seus ressentimentos. Mas, assim mesmo, com alívio nos livramos de Bolsonaro.

Se Lula venceu o antipetismo e em belo discurso no dia da vitória acentuou não haver dois Brasis, cabe-lhe agora desfazer as duas frustrações acima referidas, para unir em sua volta todos os brasileiros. Primeiramente, cumpre instalar a prática da moralidade administrativa, fortalecendo órgãos de controle, com estrita e eficiente governança, dando força à Corregedoria da União, além de assegurar não haver mancomunação do Executivo com o Ministério Público Federal. Em segundo lugar, cumpre fixar competente e técnica política econômica e social, com vistas a dar segurança aos agentes econômicos, bem como recuperar, especialmente na área da educação, em conjunto com Estados e municípios, o terreno perdido com o desastroso desgoverno Bolsonaro.

Importante restabelecer o respeito às instituições democráticas, como se exigiu em 11 de agosto, com o lema Estado de Direito Sempre, o que implica despolitizar a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal.

Que Lula, com sua experiência, saiba, além de governar, conciliar esta nação conflagrada pela direita populista, para reganharmos a estabilidade e a paz.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
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