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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | O caso Cuca

A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão

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O Direito, como dado cultural, está sujeito ao mundo da vida, no qual se revelam significados e experiências vivenciadas, geradoras de convicções compartilhadas a presidir as formas de atuar e de perceber a existência. Estes modos de pensar e de sentir evoluem no processo histórico, influenciando também a interpretação e aplicação do Direito.

Assim sucede com o assédio e a violência sexual, que passaram a ser continuamente reprovados e cobrados pela sociedade, mormente a partir de 2017, com o movimento Me Too, quando se intensificou levantar o véu protetor dos abusadores, cuja violência se normalizara ao longo dos tempos, sem haver espaço sequer para a denúncia pela vítima, condenada a sofrer no silêncio a dor e a repugnância pela barbárie. A sociedade incriminava, mas não recriminava o abuso sexual sofrido pela mulher, tal como hoje corretamente muitas vezes ocorre.

Há 37 anos, o então jogador do Grêmio Cuca, ao lado de outros três colegas, foi processado e condenado por ter mantido relação sexual com pessoa vulnerável, uma menina de apenas 13 anos. O fato ficou submerso até meados de abril passado.

Agora, recentemente indicado como técnico do Corinthians, houve reação das mais variadas pessoas e entidades, mobilizadas pelas redes sociais, que repudiaram sua assunção, malgrado o tempo passado desde o crime. Cuca é um personagem público e sua vida importa, como hoje importam os comportamentos ofensivos à liberdade e à integridade da mulher. Seu relevo público justifica, neste momento de luta contra o assédio e a violência sexual, a divulgação do fato e a reação da sociedade.

Do ponto de vista jurídico, o caso Cuca suscita três questões: 1) Há um direito ao esquecimento? 2) Deve haver proteção dos dados pessoais sensíveis? 3) Se o fato estiver ainda em juízo, quais limites deve ter o tribunal da opinião pública instalado pela internet?

Há um conflito de valores a ser dirimido diante de cada um dos problemas, devendo remeter-se sempre ao fato concreto. A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão, não consistindo em conteúdo eminentemente privado, nem havendo intuito exclusivamente caluniador.

O interesse público da divulgação prevalecerá sobre o direito de manter sob sigilo o crime conforme o entendimento de não caber perene lembrança da condenação de priscas eras. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu – resolvendo o Tema 786 da Repercussão Geral – que, se a notícia interessa à coletividade, legítimo é o direito à divulgação. Diz o Supremo: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados”. (veja-se STF RE 1.010.606/RJ – relator ministro Dias Toffoli.)

Ressaltou a ministra Cármen Lúcia, neste julgamento, “haver um direito à veracidade histórica no âmbito do princípio da solidariedade entre gerações”. Assim, é importante o relato acerca da agressão à mulher, a índios e gays, por exemplos específicos, que comprovam sua existência no passado. O ministro Dias Toffoli, no Agravo de Recurso Extraordinário n.º 833.248/RJ, ressaltou o efeito pedagógico da divulgação, pois é “necessário rever o passado para que novas gerações fiquem alertadas e repensem conduta no presente”. No caso de Cuca, é importante relembrar a condenação e aplicar a pena da reprovação social, para fazer presente a punição de fatos dessa natureza.

Na referida decisão do Tema 786 do STF, ressaltou-se que abusos de comunicação social, especialmente relativos à privacidade, devem ser analisados caso a caso. Como regra, a circunstância de ter alguém praticado crime pelo qual foi condenado não justifica que, por curiosidade, se invada sua intimidade e se revelem dados pessoais sensíveis, como crenças ou relacionamento familiar, que nada dizem respeito ao fato ocorrido. Segundo dispõe a Constituição, no artigo 5.º, inciso LX, a “lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade o exigir”.

Portanto, difusão de aspecto da área exclusiva da pessoa é admitida apenas se atender a um interesse público por ser aspecto essencial do crime, guardando relação com o fato delituoso. Pela mesma razão, ataques no anonimato das redes a familiares de Cuca devem ser reprimidos, sendo mesmo preciso uma moderação de conteúdo na internet.

Resta a questão do tribunal especial da internet, em casos ainda em análise pela Justiça, mas já objeto, nas redes, de julgamento antecipado ou de campanha pela condenação, com afronta ao princípio da presunção de inocência. Em tempos nos quais se vive na mídia e pela mídia, há um contraponto entre a força da comunicação social e a fragilidade do magistrado. O silêncio e recolhimento para julgar, reclamados pelo jurista italiano Carnelutti, desaparecem, tal como o rito processual disciplinador da resposta penal. Mas é assunto para muitos outros artigos.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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