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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | O ‘direito’ à mentira

Jair Bolsonaro e família sabem do relevo eleitoral da viabilidade deste direito

Por Miguel Reale Júnior

Bolsonaro, 15 dias atrás, na solenidade de entrega do Prêmio Marechal Rondon de Comunicações, verbalizou a maior de todas as mentiras ao dizer: “Fake news faz parte da nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha para a namorada?” E completou: “Não precisamos regular isso aí, deixemos o povo à vontade”.

A pretensão de banalizar a mentira, normalizando a desinformação, constitui desonestidade intelectual, pois bem sabe que o falsear a verdade foi o principal expediente para a vitória eleitoral em 2018. Por isso, visa a proteger o “direito” à inverdade, proibindo por medida provisória a exclusão de falsidades pelas próprias plataformas: “Não regula, deixa à vontade”.

O peso da mentira na política é imenso: a publicação, em 1905, do Protocolo dos Sábios do Sião, produzido por sequazes do czar, reunia pretensos relatórios de chefes judaicos para dominação do mundo pela via das finanças, do comércio, da comunicação. Deste forjado documento valeu-se Hitler para justificar perseguição ao povo hebraico que desaguou na solução final. Entre nós, documento também forjado, o Plano Cohen, revelava estratégia de tomada do poder pela Internacional Comunista, a justificar a instalação da ditadura getuliana, em 1937, “como medida necessária”.

Hoje a rapidez e a dimensão da disseminação da mentira deformam o processo de escolha do eleitor, induzido a erro pelo disparo em massa de desinformações nas redes sociais, cujos conteúdos são assimilados sem filtro crítico, num excesso de mensagens com escassez de reflexão.

Bolsonaro e família sabem do relevo eleitoral da viabilidade do “direito de mentir”, bastando lembrar que Bolsonaro candidato, em entrevista ao Jornal Nacional, afirmou falsamente haver um “kit gay” sobre educação sexual disponível nas bibliotecas das escolas públicas, livreto intitulado Aparelho sexual e cia. Acusou-se, nas redes, Fernando Haddad de distribuir mamadeiras com bico em formato de pênis. Espalhou-se foto montada da presença do agressor de Bolsonaro, Adélio Bispo, em comício de Lula.

A candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila foi vítima de diversas mentiras, a começar por foto com camiseta estampando a frase “Cristo era travesti”. Atribuíram a Manuela a frase de John Lennon sobre os Beatles em 1966: “Nós somos mais populares do que Jesus Cristo neste momento”.

Idelber Avelar (Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI) lembra levantamento feito pela USP e pela UFMG indicativo de que apenas 4 das 50 imagens mais compartilhadas em 347 grupos bolsonaristas de WhatsApp eram verdadeiras. A CPMI das Fake News também fez pesquisa da influência da mentira no processo eleitoral, permitindo à relatora da comissão, Lídice da Mata, declarar: “Nossas investigações sempre apontaram para uma rede de desinformação que pode, sim, ter influenciado o pleito eleitoral de 2018 e que continua atuante com fortes suspeitas de amplo apoio da família Bolsonaro”.

Explica-se, então, a conduta de Bolsonaro ao vetar, no projeto de lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, o artigo 359-0 do Código Penal, que criminalizava o disparo em massa, por via paralela à das plataformas, de notícias falsas, capazes de comprometer a fidedignidade da escolha do eleitor. O veto está para apreciação do Congresso Nacional, com expectativa de ser derrubado.

Ao tempo da imposição do veto a este artigo, Bolsonaro emitiu a medida provisória, reputada inconstitucional, que impedia as plataformas de retirarem da rede notícias sabidamente inverídicas que causam dano à comunidade.

Bolsonaro, derrotado na intenção de consagrar o direito à mentira nas redes por via de medida provisória, enviou na forma de projeto de lei a mesma proposta legislativa, sendo que a transparência na internet já é objeto do Projeto de Lei n.º 2.630, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados, instituindo a moderação e Autorregulação Regulada, por via das próprias plataformas, o que já vem sendo praticado especialmente por Facebook, WhatsApp e Twitter.

O projeto de Código Eleitoral, em seu artigo 882, também prevê como figura penal “divulgar ou compartilhar fatos que sabe inverídicos ou gravemente descontextualizados com aptidão para exercer influência perante o eleitorado”. Será vetado também?

Desta forma, o ataque de Bolsonaro ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal, em especial a Alexandre de Moraes e a Luís Roberto Barroso, encontra razão na ação das instituições da Justiça contra as contas que nas redes emanam notícias falsas, chegando-se a impedir a monetarização das mesmas.

O Estado de S. Paulo de domingo passado, em matéria de capa, denuncia que a família Bolsonaro e o escritório do ódio migram sua atuação de difusão de mentiras para as plataformas do Tik Tok e do Instagram, que não têm representação no Brasil e têm incipiente controle de conteúdo – ideais, portanto, para as “campanhas de mobilização e de desinformação”, com publicações agressivas e de confronto.

Em suma, o dístico de Bolsonaro bem poderia ser “conhecerás a mentira e ela me elegerá”.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
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