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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Punir o criminoso e acolher a vítima

Tanto a violência de gênero como a sexual constituem exercício do poder sobre o mais frágil – no País, mulheres e crianças negras –, a ser combatido pela aplicação da lei penal

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Vem de ser publicado o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, revelando decréscimo das mortes violentas intencionais, mas assim mesmo mostrando o clima de violência predominante, pois se em número relativo ao de habitantes o Brasil ocupa a 18.ª posição, em números absolutos é o país com maior incidência de homicídios, latrocínios e lesão seguida de morte.

Como se alerta no anuário, se não houve aumento de casos de homicídio consumado de mulheres entre 2022 e 2023, no entanto, houve aumento de 9,2% das tentativas de homicídio, e de 7,1% de feminicídio, caracterizando-se este último por ser a mulher visada em vista de sua condição de mulher, e por essa razão objeto de discriminação e de desprezo (artigo 121, parágrafo 2.º, inciso VI do Código Penal).

Não é a consumação do delito de homicídio que revela o grau de incidência do fato criminoso, pois a intenção de matar está presente na tentativa, que se diferencia pela circunstância de o evento morte deixar de ocorrer por razões alheias à vontade do agente – por exemplo, erra-se o tiro.

Em paralelo ao número significativo de crimes contra a vida de mulheres (homicídios e feminicídios), há também acréscimo de lesão corporal, ameaça ou perseguição, em grande parte domésticas. Mais preocupante, no entanto, é o aumento de estupros ou estupros de vulnerável, este caracterizado pela prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sem capacidade, portanto, de consentimento.

Com efeito, de 2011 a 2023 os estupros cresceram 91,5% – com destaque ao grande número de vítimas menores de 10 anos. Cumpre anotar ter havido, no ano passado em relação ao de 2022, um aumento de 6,5%.

A média nacional já é alta, de 41,4 por grupo de 100 mil habitantes, porém em Rondônia ou Acre há índices alarmantes de mais de 100 casos por 100 mil habitantes. O Núcleo de Estudos Raciais do Insper, analisando dados de notificação do Ministério da Saúde, também sinalizou aumento de casos de estupro de 2012 a 2021, malgrado a enorme ausência de denúncia pelas vítimas.

Seria, então, de se perguntar se o estupro e o estupro de vulnerável são fenômenos do subdesenvolvimento, em sociedade reprodutora de valores misóginos, onde prevalecem a força física ou resquícios culturais da escravidão.

Em importante estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) intitulado Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados, sugerem-se duas categorias: a violência de gênero associada à nossa sociedade, arquipatriarcal, misógina, androcêntrica e machista; e a violência sexual, consistente na agressão, no uso da força física ou da intimidação, praticada por parceiros íntimos, sendo esta a realidade em diversos países.

É, todavia, interessante notar que nos países escandinavos, onde prevalece significativa igualdade de gênero, mormente na vida cotidiana, ocorra número expressivo de estupros. Na Suécia, onde impera também nas esferas de poder a igualdade de gênero, há, no entanto, um buraco negro: os altos índices de violência machista, como se observa em matéria do jornal El País.

É o paradoxo nórdico: conciliar a consistente igualdade de gênero com vultoso índice de estupros. Supõe-se que a violência física visa a contrapor o poder da mulher na sociedade.

Na Dinamarca, onde também prevalece a igualdade de gênero, há, todavia, violência sexual, pois segundo a Universidade do Sul da Dinamarca foram 24 mil vítimas em 2017, com população pequena de 5,8 milhões.

Em face desses dados, concordo com a psiquiatra Sahika Yuksel, que disse à BBC ser “o estupro não um ato sexual, mas um ataque. Trata-se de vencer, de conseguir um objeto – e a mulher é objetificada neste caso. Trata-se de poder”.

Tanto a violência de gênero como a sexual, a meu ver, na essência, constituem exercício do poder sobre o mais frágil – no Brasil, mulheres e crianças negras –, a ser combatido pela aplicação da lei penal, superando-se o obstáculo da imensa subnotificação. Para tanto, são precisas medidas facilitadoras da denúncia, com amplo esclarecimento do relevo de se denunciar o acontecido, bem como acolhimento das vítimas, para as encorajar a noticiar o fato. Para esse acolhimento devem haver plantões sociais nos quais ocorra o exame de corpo de delito e atendimento por psicólogo e assistente social. Relevante também a assistência jurídica, como já se fez pela Conectas Direitos Humanos, em atividade da qual participei, com a Casa da Mulher em atuação conjunta com o Hospital São Paulo.

Dentre as dez sugestões da Organização das Nações Unidas (ONU) para erradicar a violência contra a mulher, consta em primeiro lugar escutar e crer nas mulheres, sendo preciso que haja assistência multidisciplinar para reduzir consequências físicas e psíquicas do delito. Contra a cultura da violação, a repressão ao criminoso e assistência à vítima.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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