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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Rei merovíngio

Ao conceder graça a deputado, Bolsonaro se atribuiu poder pessoal para ditar a justiça no seu exclusivo interesse, como se revestido de autoridade soberana.

Por Miguel Reale Júnior

Investigado no inquérito relativo à difusão de fake news, o deputado Daniel Silveira, em abril de 2020, incitou a população a fazer cerco e a promover a invasão das sedes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional. Em novembro de 2020, fez novas ameaças e instigou o povo a entrar no STF, “agarrar o Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacudir aquela cabeça de ovo e jogar dentro de uma lixeira”. No mês seguinte, chamou os ministros do STF de marginais, “cambada de imbecil”, desafiando-os a prende-lo e vaticinando que, se continuassem a julgar como o faziam, o STF e a Justiça Eleitoral não mais iriam existir, “porque nós não permitiremos”.

Blasonando ser inviolável civil e penalmente pelas suas opiniões, Silveira prometeu acabar com “ministros canalhas”, sendo este o seu papel como parlamentar.

Não há, nessas verbalizações, qualquer manifestação de pensamento, pois inexiste raciocínio mínimo a presidir o discurso. Este se limita a uma enxurrada de ameaças graves e de ofensas grosseiras, chulas.

Ao instigar a invasão do Supremo, com violação da integridade física dos ministros, visou o deputado, mediante grave ameaça, a impedir o funcionamento livre da instituição. Tipifica-se, portanto, um crime contra o Estado Democrático de Direito, previsto no Código Penal (art. 359 L), consistente em “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

Ora, o direito de livre expressão do pensamento deve ser o mais amplo, mas não é admissível que deixe o campo da crítica para restar simples e unicamente na esfera da ofensa e da ameaça. A Constituição federal, no art. 220, consagra a ampla liberdade de manifestação, mas respeitando valores consagrados pela própria Constituição, como a ordem constitucional e o Estado Democrático. A ofensa a esses valores se qualifica, no art. 5.º, XLIV, como crime inafiançável e imprescritível.

A nossa democracia é combativa, defende a si mesma, pois não admite, ingenuamente, que se possa valer da liberdade para destruir a liberdade. Cabe, em nome da tolerância, proclamar o direito de não ser tolerante com o intolerante, como destacam Alaor Leite e Adriano Teixeira em parecer à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre segurança nacional.

Assim é em países democráticos. O art. 18 da Constituição da Alemanha determina perder direitos fundamentais quem, ao combater a ordem constitucional, abusar da liberdade de expressar a opinião, particularmente da liberdade de imprensa. O Código Penal alemão (art. 90b), na linha do estatuído na Constituição, tipifica como crime divulgar difamação a alguma instituição da Federação ou se empenhar em tentativas contra a existência da República ou contra os princípios da Constituição.

No Código Penal italiano, o art. 342 estatui ser crime ofender o prestígio de um corpo judiciário. Em Portugal, no art. 325 do Código Penal, tipifica-se como crime tentar, por meio de violência ou grave ameaça, alterar o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido. E, no art. 333, estatui-se ser crime constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania.

Como se vê, a democracia protege-se a si mesma, limitando a liberdade de expressão quando esta se transforma abusivamente em ataque ao Estado Democrático, às instituições constitucionais.

Foi isso que fez o Supremo Tribunal Federal ao condenar o deputado Daniel Silveira, personificação da força bruta, por seus ataques à instituição e aos seus ministros, colocando em perigo a ordem constitucional. Só um exercício de má-fé pode transformar uma ofensa à República em uso “legítimo” da liberdade de expressão.

Mas o presidente da República se arvorou em juiz do Supremo Tribunal Federal. Antes mesmo da publicação da decisão, concedeu graça ao condenado, considerando que houvera apenas “uso da liberdade de expressão”, pretendendo, assim, instituir-se como encarnação única do Poder Judiciário.

Bolsonaro, como um rei merovíngio, monarca dos francos no século VI (Ellul, Histoire des institutions, p. 683), se atribuiu poder pessoal para ditar a justiça no seu exclusivo interesse, como se revestido de autoridade soberana.

O presidente, todo-poderoso, contestou a decisão da Justiça, a alterou, agindo como se Judiciário fosse, e declarou solenemente a constitucionalidade do próprio ato de graça.

Ao considerar inocente o brutamontes, o presidente informou à Nação que atingir com ameaças graves o Supremo Tribunal Federal não é crime, razão pela qual, como salienta parecer da OAB da lavra de Lenio Streck, tornou próprio o constrangimento imposto ao Judiciário.

Constitui crime de responsabilidade (art. 85 da Constituição) atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário, como se deu com a concessão da graça modificativa da decisão judicial. O decreto de graça, mais que inconstitucional, encerra crime contra a República, o que se repete com a proposta de apuração paralela das eleições pelas Forças Armadas. São ensaios para o golpe.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
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