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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Revisão das leis dos crimes ambientais

Cumpre alterar a Lei 9.605/98, discernindo entre o que cria perigo à incolumidade humana, animal ou vegetal e o que é mera desobediência a ditames regulamentares

Foto do author Miguel Reale Júnior

A crise climática, a irromper no futuro, já chegou. Para enfrentá-la, proclamam que se deve aumentar a pena dos crimes ambientais. A questão é mais complexa, pois cumpre alterar grande parte da Lei n.º 9.605/1998, discernindo entre o que cria perigo à incolumidade humana, animal ou vegetal e o que se resume a ser mera desobediência a ditames regulamentares.

Sem dúvida, cabe a intervenção do legislador, sancionando, como medida preventiva, situação propícia a aflorar perigo ao meio ambiente. Muitas dessas ações constituem infrações-obstáculo, de cunho administrativo e não penal, precauções para impedir atividade prévia à ofensa ao meio ambiente.

Erradamente, o legislador optou por criminalizar tais infrações, ou seja, o mero desrespeito ao constante de portaria ou decreto, sem exigir o surgimento de situação perigosa à incolumidade humana, animal ou vegetal. Tal opção afronta o princípio da intervenção mínima, segundo o qual reserva-se o caráter penal apenas às condutas gravemente lesivas ao bem jurídico.

Lembro, então, alguns tipos de crime consistentes em simples desobediência:

“Artigo 51. Comercializar motosserra ou utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou registro da autoridade competente.

“Artigo 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos. Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

No parágrafo, estende-se a incriminação ao fato de se abandonar substância tóxica, em desacordo com as normas ambientais, ou manipular ou acondicionar resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou regulamento. Prevê-se, também, a forma culposa, configurando-se como crime, por exemplo, o esquecimento no pasto de frasco de agrotóxico.

Dando, igualmente, relevo à desobediência ao determinado em portaria, no artigo 60, prevê-se como crime fazer funcionar serviços potencialmente poluidores, contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes.

Por outra parte, comportamentos que infringem normas ambientais vêm a ser, conforme o artigo 70 da lei, infração administrativa, sendo obrigatório se promover sua apuração imediata, pelo que seria desnecessário elevar-se tais condutas à categoria de crime.

O maior despropósito na incriminação de conduta de fraca lesividade ao meio ambiente está no artigo 49 da lei:

“Artigo 49. Destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia. Pena: detenção, de três meses a um ano. Parágrafo único: no crime culposo, a pena é de um a seis meses.”

Na Lei 9.605/98, torna-se crime contra o meio ambiente, portanto, a ação de maltratar planta ornamental alheia, sendo espantosa a previsão da forma culposa. Dessa maneira, se alguém escorregar e pisar no canteiro de begônias do jardim vizinho, tipifica-se crime ambiental.

Mas, em evidente contraste, a lei exige, todavia, para a configuração do crime de poluição, fato nuclear contra o meio ambiente, a causação de dano de monta, ou seja, a produção de resultado concreto de elevada nocividade. Diz, então, o artigo 54 relativo ao crime de poluição:

“Artigo 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Note-se que para tão danosa conduta a pena é idêntica a quem apenas tem em depósito substância tóxica, por exemplo. Além do mais, relevante no plano penal vem a ser a poluição de qualquer natureza em “níveis tais” (em linguagem coloquial), que possa causar mortandade de animais ou destruição significativa da flora. Restringe-se a figura penal da poluição a casos excepcionais, pois só configurarão crime as ações causadoras de resultados extraordinários.

Integrei em 1984, com ilustres penalistas, comissão que elaborou proposta de Parte Especial do Código Penal, cabendo a mim relatar o capítulo dos crimes ambientais. Primeiramente, o texto foi publicado para críticas, gerando versão revista com quatro figuras relativas à água, solo, subsolo e ar, com circunstâncias qualificadoras próprias de cada elemento.

Na proposta, este foi o tipo penal da poluição: “Causar indevidamente poluição de águas (ar, solo, subsolo) expondo a perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou tornando mais grave a situação de perigo existente”.

A poluição, portanto, consiste na criação, nos elementos da natureza, de situação perigosa à incolumidade, a justificar a incriminação, mas sem requerer produção de dano gravíssimo, como veio a requerer a lei penal ambiental.

Relembro esse trabalho, composto por 16 artigos, para ser tomado como ponto de partida visando a uma revisão da atual lei, adaptando-a às condições da grande crise ambiental.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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