Foi uma sensação de reencontro provavelmente previsível, mas, para mim, inesperada diante da circunstância de estar vivendo imerso em águas turvas. Foi um reencontro com a civilização. Estive uma semana na Espanha. Em poucas horas vivenciei a satisfação de estar em ambiente no qual não havia sobressaltos, no qual não seria surpreendido por absurdos altissonantes. Não precisava ficar tensamente na defensiva, preocupado com ataque tosco a valores integrantes de nosso modo de ver e de viver, consolidados ao longo do tempo. As pessoas ao meu lado mostravam-se seguras da estabilidade das conquistas sobre a dignidade da pessoa humana.
Pude perceber, à distância, que a vida no Brasil me inseria em meio doentio contaminante, a transformar todos em hóspedes de um hospício, no qual por mimetismo se adquirem os jeitos e trejeitos dos pacientes alienados.
Os espanhóis, admirados, indagavam como era possível um povo criativo e amante da liberdade, como o nosso, estar ainda a aguentar o obscurantismo do universo “bolsonariano”, no qual a inteligência e a sensibilidade se desfazem. Essas indagações geraram tanto constrangimento como expectativa de que, com as energias ainda não totalmente enfraquecidas, será possível fazer prevalecer o país saudável, animado pelo impulso de prosperar no respeito à vida, à saúde, à liberdade de pensar e criar, com o talento que a diversidade própria do nosso povo proporciona.
Mas, ao voltar ao Brasil, pude constatar a convivência destes dois sentimentos: vergonha e esperança.
A vergonha por nosso país ter sido naturalmente excluído do G-20, especialmente em vista da presença de Bolsonaro, que foi até ignorado pelos garçons que serviam aos maiores mandatários do mundo. O Brasil saiu do G-20 pela porta dos fundos, tal como Bolsonaro fez para ganhar a rua ao escapulir escondido da embaixada brasileira na Piazza Navona.
Bolsonaro foi solitário à Fontana di Trevi e, para confirmar seu completo isolamento, deixou de estar ao lado dos demais mandatários na visita oficial do G-20 à icônica fonte romana. Todos os chefes das nações jogaram moedas de costas formulando um desejo. Bolsonaro lá esteve e não fez votos ao bem de seu povo, deixando de jogar a moeda, demonstrando não ter a imaginação mínima necessária para participar deste jogo com o futuro. Foi ali, na Fontana di Trevi, inaugurado o G-19.
A figura tosca do presidente do Brasil se fez tristemente palpável no paradigmático episódio com a chanceler Angela Merkel, de quem Bolsonaro inadvertidamente pisou no pé, ao que a líder da Alemanha exclamou: “Só podia ser você!”.
Mas, ao lado do sentimento de constrangimento, reconhecendo terem razão os chefes das nações em ignorar nosso presidente, surgiu nestes dias da COP-26 – à qual injustificadamente Bolsonaro não foi – a visualização do Brasil saudável.
Este lado sadio, positivo e prospectivo colhe-se da participação dos chefes dos entes subnacionais, os Estados de nossa Federação, no encontro sobre clima; da ida de importantes empresários brasileiros a Glasgow para levar projetos de empreendimentos que respeitam a preservação do meio ambiente; e, por fim, da presença de nossa sociedade civil neste importante encontro para que o mundo tenha futuro.
Os governadores criaram, para participar da COP-26, o Consórcio Brasil Verde, coordenado pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, que lidera, em Glasgow, grupo de 13 governadores. Em contraponto à triste conduta do governo federal, propõem-se de forma concreta ações preventivas para redução de emissão de poluentes e de preservação da Amazônia.
Os governadores – como ressaltou Eduardo Leite em palestra na Universidade de Edimburgo, ao lado do professor brasileiro Cláudio Michelon, catedrático de Filosofia do Direito naquela universidade – tentam, na ausência do governo federal, coordenadamente agir na proteção do meio ambiente.
Em outra vertente o Brasil se faz presente por via da iniciativa privada, que apresentou projetos bem-sucedidos de sustentação da biodiversidade. Os empresários brasileiros, em vista da imagem negativa do País, foram a Glasgow mostrar o compromisso com a defesa do meio ambiente de parcela considerável do PIB do Brasil, por meio do Movimento Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura e do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds.org), que fizeram sugestões concretas para o bom uso da terra.
Por fim, o melhor do Brasil brasileiro se fez comovente na figura da moça indígena Txai Suruí, do povo Paiter Suruí do Amazonas, que defendeu a participação dos povos indígenas na tomada de decisões sobre a Amazônia, para ao final alertar: “A Terra nos diz que não temos mais tempo. Não é 2030 ou 2050. É agora”.
Sentimentos contraditórios dominam meu espírito: abatimento, mas crença na resiliência do brasileiro em enfrentar o obscurantismo. Se não é agora, será em 2022 a volta à civilização e ao G-20.
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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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