O governo de Lula da Silva decidiu que pode, por decreto, disciplinar, regular e reduzir o mau uso da força por policiais de todo o Brasil. Com o texto publicado no último dia 24 de dezembro, o presidente e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, repetiram dois vícios nacionais, que emergem, sobretudo, em momentos de clamor popular diante de casos revoltantes envolvendo agentes do Estado. O primeiro é a centralização federativa, seguindo a crença de que planejamentos nacionais, concebidos em Brasília e submetidos às unidades da Federação, independentemente das realidades locais e regionais, trarão eficiência e bons resultados. O segundo vício é a lógica legiferante: em vez de criar mecanismos para o cumprimento de leis, regras, portarias e protocolos que instituições, incluindo corporações policiais, devem seguir, o governo resolve criar mais uma. É a presunção de que basta enunciar leis para que problemas nacionais sejam superados.
Incapaz de respeitar princípios federativos e considerando insuficientes as leis e os protocolos policiais que já existem, o governo publicou o decreto com o qual supostamente define novas regras para o uso da força, proíbe o uso das armas de fogo em circunstâncias que não representam riscos a policiais e a terceiros e regula políticas de segurança. Prevê, por exemplo, que a arma de fogo só poderá ser usada como último recurso. Também proíbe o uso de armas contra pessoas desarmadas em fuga ou veículos que desrespeitem bloqueios policiais em via pública. Afirma ainda que operações precisam ser planejadas e executadas com cautela “para prevenir ou minimizar o uso da força e para mitigar a gravidade de qualquer dano direto ou indireto que possa ser causado a quaisquer pessoas”.
Ocorre que nada do decreto chega a ser novidade no Brasil. As “novas” regras são, no fundo, uma atualização de uma portaria de 2010, que também tratava do uso da força policial. Na época, criou-se um grupo de trabalho com representantes das polícias estaduais, do governo federal e da sociedade civil. Não à toa, muito do que está no decreto já é parte do cotidiano das corporações. Por exemplo, agentes não podem atirar a esmo, sem que haja necessidade efetiva para fazê-lo, e a execução de operações policiais já requer planejamento e mitigação de danos. Seriam duas tautologias, não fosse o Brasil um país de histórico de violência policial, sobretudo contra pobres e negros. Convém lembrar ainda a própria Constituição, pródiga na defesa de direitos fundamentais de cidadãos, que o Estado precisa respeitar.
Só se compreende o decreto se lido pela ótica do desejo lulopetista de oferecer alguma iniciativa com a qual assuma um protagonismo numa área em que tem deixado a desejar. Também pode ter sido uma mera tentativa do governo federal de tirar uma casquinha da crise de segurança pública enfrentada em São Paulo pelo governador Tarcísio de Freitas, considerado um dos potenciais adversários de Lula em 2026 na ausência de Jair Bolsonaro na corrida eleitoral.
Enquanto isso, falta ao País adotar uma cláusula pétrea: treinamentos sistemáticos e qualificados para formação e atualização dos policiais são um caminho imprescindível para a profissionalização das polícias, juntamente com recursos, infraestrutura, adoção de armas menos letais e o cumprimento das diretrizes existentes para atuação dos agentes do Estado em serviço. O Brasil também carece de menos populismo por parte de lideranças políticas, que exploram o medo legítimo da população para ações ilegítimas de suas forças de segurança. É uma tentação fácil que acaba por politizar o tema em demasia, oferecer uma falsa sensação de segurança e gerar danos graves à sociedade, como o aumento da letalidade policial. Ter policiais sem limites abre caminho para a atuação das milícias e para o crescimento do crime organizado, mas tentar criar limites por decreto é uma forma apenas de fingir que está fazendo alguma coisa sem, contudo, mudar a realidade.