Uma das principais críticas contra a Operação Lava Jato foi a de que, ainda na fase de investigação, usou-se a opinião pública para estabelecer uma específica versão dos fatos, mesmo que eles não tivessem sido devidamente corroborados no âmbito processual. A investigação, mais do que servir para investigar, foi instrumentalizada para condenar os envolvidos no tribunal da opinião pública e, com isso, forçar que a Justiça proferisse depois determinado veredicto sobre o caso.
São muitos os problemas daí decorrentes.
Promoveu-se a condenação pública de investigados antes de a Justiça decretar sua condenação. Muitas vezes, a pessoa não figurava sequer no inquérito como investigada. Bastava a menção do seu nome numa delação para ser condenada pela opinião pública.
Não existe, nessa dinâmica, direito de defesa. A pessoa já está condenada antes mesmo de haver uma denúncia contra ela. Adverte-se: isso não significa atestar a idoneidade do seu comportamento. O tema é outro. A violação do direito de defesa é igualmente grave nos casos em que a pessoa praticou o crime e nos casos em que não o praticou. E é grave porque o Estado não tem o direito de punir ninguém – não tem autoridade para dizer que uma pessoa cometeu determinado crime – sem respeitar o direito de defesa e o princípio do contraditório. Trata-se de ponto inegociável.
No Estado Democrático de Direito, nenhum órgão estatal pode ser usado para finalidades fora de suas atribuições institucionais. Isso é autoritário, isso é antidemocrático. O sistema de Justiça não pode ser manejado para fixar responsabilidades penais fora de seus parâmetros constitucionais e legais.
Um segundo problema refere-se à natureza do trabalho investigativo. Quando a hipótese do inquérito é tratada, desde o início, como verdade estabelecida – e é assim apresentada na opinião pública –, a investigação deixa de ser investigação, para se tornar juízo.
O uso do “suposto” no jornalismo, ao falar de crime em sede de investigação, não é preciosismo, mas estrita adesão aos fatos. No Estado Democrático de Direito, com divisão de poderes e respeito aos direitos fundamentais, atribuir crime a uma pessoa é competência exclusiva do Judiciário, a ser exercida dentro de um procedimento específico. Sem esses dois aspectos – competência e rito –, imputar crime a uma pessoa é arbítrio, afronta às garantias próprias da democracia.
O respeito ao rito passa por compreender o rito. Prova – no sentido de elemento apto a fundamentar uma condenação – é apenas aquela “produzida em contraditório judicial”, como prevê o Código de Processo Penal. Tudo o que se tem antes do processo penal são meros “elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Mais do que mera questão de nomenclatura, isso significa que, no momento do inquérito, é impossível haver elementos suficientes para considerar uma pessoa culpada.
Evidencia-se aqui mais um problema do uso abusivo das prisões preventivas. Na Lava Jato, elas funcionavam como a confirmação da culpa dos envolvidos: a Justiça decretou sua prisão. Não precisava mais de denúncia, de processo, de defesa, de sentença ou de recurso. Para piorar, isso era percebido como positivo pela população. Pela primeira vez na história do País, o Judiciário estava colocando gente poderosa na cadeia.
Por mais que estejamos pessoalmente convencidos de que houve crime, é um erro tratar, na esfera pública, a hipótese investigativa como verdade. E sejamos honestos: esse tratamento não é concedido depois de uma apuração detalhada do que foi confirmado, excluindo todo o restante. No imaginário popular, toda a narrativa torna-se verdade, sendo que é impossível – de fato e de direito – estar a narrativa devidamente corroborada na fase investigativa.
Infelizmente, os acontecimentos recentes mostram que não aprendemos com os erros da Lava Jato. Os PowerPoints, em suas diferentes modalidades, continuam produzindo certezas. As investigações continuam estabelecendo a verdade pública.
Tudo isso causa um enorme prejuízo à Justiça; a rigor, a todo o regime democrático. Nesse cenário, não há final bonito para o Judiciário. Ou ele perde a isenção, julgando com base na pressão popular, ou perde a autoridade, por não condenar o que há muito estava condenado por parte da opinião pública. A Justiça fica destituída de sua capacidade de pacificar os conflitos sociais.
No regime democrático, hipótese investigativa e fato provado são realidades distintas, que existem em momentos processuais distintos. Talvez alguém questione: mas há muitos indícios, os elementos de materialidade e de autoria do crime são evidentes. Nesse caso, vislumbra-se ainda mais razão para não fazer da investigação um espetáculo, para não transformá-la em juízo antecipado. Sendo abundantes os indícios, não há necessidade de precipitar o julgamento. Mais importante, necessário e decisivo é apresentar uma denúncia bem-feita, precisa e consistente. É isso o que se deve aplaudir. É isso o que se deve exigir.
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ADVOGADO
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