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Advogado e Jornalista

Opinião | A fraqueza do consequencialismo

É razoável – é humano – calar-se diante da morte de inocentes, à espera de uma ‘análise mais completa’ dos seus efeitos?

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Na London Review of Books (The Compass of Mourning, 19/10/2023), a filósofa Judith Butler escreveu sobre as diferentes respostas possíveis à violência, refutando a ideia de que condenar a violência seria abdicar de compreender seu contexto – ou de que a busca por uma compreensão mais ampla de um ato significaria reduzir a indignação. Em determinado trecho, Judith Butler reconhece o acerto – bem como as limitações – da seguinte posição: “Não preciso saber nada sobre a Palestina ou o Hamas para saber que o que eles fizeram (no dia 7 de outubro) é errado e condenar suas ações”.

Mais do que um fechar-se a um maior conhecimento dos fatos, vejo na condenação moral imediata dos atos do Hamas contra civis uma rejeição do chamado consequencialismo. Essa postura filosófica defende que não existem ações intrinsecamente más. A moralidade de uma ação seria resultado de uma avaliação ampla de suas consequências – o que, na prática, impede emitir juízos morais contundentes e imediatos, especialmente em situações complexas como a do Oriente Médio. Antes de qualquer reprovação moral, seria preciso fazer uma sofisticada avaliação, inacessível às pessoas comuns. Levado ao extremo, o consequencialismo relegaria tudo a um distante juízo da História.

Na vida corrente, a postura consequencialista atraiu muitos adeptos. Parece uma atitude razoável, aberta, não dogmática. Mas sua razoabilidade se esvai diante do que se viu no dia 7 de outubro. É razoável – é humano – calar-se diante da morte de inocentes, à espera de uma “análise mais completa” dos seus efeitos?

O texto de Judith Butler fez-me lembrar de um episódio ocorrido nos anos 50 do século passado, envolvendo outra filósofa que também rompeu padrões em sua época. Refiro-me à inglesa Elizabeth Anscombe (também conhecida como G. E. M. Anscombe), discípula e tradutora de Ludwig Wittgenstein. Em 1956, ela se opôs ferrenhamente ao plano da Universidade de Oxford de conceder doutorado honoris causa a Harry Truman, o presidente americano que autorizou o lançamento das bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. “A escolha de matar inocentes como meio para alcançar seus fins é sempre assassinato”, defendeu a professora.

A campanha de resistência de Elizabeth Anscombe foi um fracasso. Apenas dois colegas a apoiaram e, em junho de 1956, Harry Truman recebeu a homenagem da Universidade de Oxford. Mais do que com o ato em si, a professora Anscombe ficou perplexa com a dificuldade de as pessoas perceberem o que lhe parecia evidente. Muitos de seus colegas de cátedra estavam aplaudindo um homem que havia ordenado matar centenas de milhares de inocentes. Eles se recusavam, inclusive, a descrever a ação de Truman dessa forma. Havia um dissenso não somente no juízo valorativo, mas na própria compreensão da ação.

A indignação de Elizabeth Anscombe com a homenagem concedida a Harry Truman foi um dos grandes motores para que ela desenvolvesse em 1957 a obra Intention (a edição brasileira foi lançada em 2023 pela editora Associação Filosófica Scientiae Studia), na qual apresenta sua teoria da ação – e que viria a ser considerada como um dos clássicos da filosofia analítica. No ano seguinte, Anscombe publicou Modern Moral Philosophy, artigo no qual foi usado pela primeira vez o termo consequencialismo.

Essa história de Elizabeth Anscombe me comove profundamente. Por seu enfrentamento ao espírito do tempo. Por sua aposta na racionalidade humana. Pelo encaminhamento produtivo de sua indignação. Não ficou reclamando dos que discordavam dela. Ao contrário, usou seu rigor intelectual e sua capacidade comunicativa para melhorar seu ponto de vista e defendê-lo de maneira mais efetiva. E tudo isso junto com a criação dos sete filhos que teve com o filósofo Peter Geach, também um excelente professor, cujos livros expressam seu grande apreço – diferentemente de Elizabeth – por exposições sistemáticas.

Mas voltemos à teoria da ação de Elizabeth Anscombe. Segundo ela, para compreender uma ação humana, são necessárias duas perguntas: O que foi feito? Por que isso foi feito? A resposta à segunda pergunta não altera o conteúdo da primeira questão, que apresenta o que foi efetivamente realizado (a ação intencional, objeto do juízo moral). A finalidade da ação (por exemplo, terminar mais rapidamente a 2.ª Guerra Mundial) não modifica o conteúdo efetivo da ação (por exemplo, lançar uma bomba atômica sobre a população civil). O consequencialismo confunde os dois planos, como se a avaliação moral do lançamento da bomba dependesse do fim pretendido. Essa é exatamente a estrutura argumentativa utilizada na defesa dos atos do Hamas no dia 7 de outubro – e de tantos outros atos que sempre foram considerados imorais, mas para os quais, hoje em dia, se tenta alguma justificativa.

A reflexão ética deve desvelar o sentido das ações humanas, e não autorizar a violência ou validar o desumano. A reprovação incondicional da morte de inocentes não é moralismo seletivo, mas afirmação de humanidade – própria e alheia.

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ADVOGADO

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti

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