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Advogado e Jornalista

Opinião|Não a uma visão infantil do País

Quantas gerações serão necessárias para que paremos de repetir as mesmas ideias simplistas, os mesmos chavões reducionistas?

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A culpa pelo atraso brasileiro é da alta carga tributária e da ineficiência estatal. A culpa pelo atraso brasileiro é do corporativismo do funcionalismo público. A culpa pelo atraso brasileiro é dos privilégios que os políticos e o Judiciário concedem a si mesmos.

A culpa pelo atraso brasileiro é do aparelhamento ideológico do Estado. A culpa pelo atraso brasileiro é da corrupção sistêmica na administração pública. A culpa pelo atraso brasileiro é da impunidade dos poderosos.

A culpa pelo atraso brasileiro é da hegemonia do poder estatal, que preenche todos os espaços da vida civil. A culpa pelo atraso brasileiro é das oligarquias que mandam no País desde 1500. A culpa pelo atraso brasileiro é da colonização portuguesa baseada na exploração.

A culpa pelo atraso brasileiro é da Constituição de 1988, que prevê direitos demais e deveres de menos. A culpa pelo atraso brasileiro é do foro privilegiado. A culpa pelo atraso brasileiro é das penas brandas e dos muitos recursos concedidos pela lei.

A culpa pelo atraso brasileiro é das Forças Armadas. A culpa pelo atraso brasileiro é do Supremo Tribunal Federal (STF) ativista. A culpa pelo atraso brasileiro é do Congresso corrupto e omisso.

A culpa pelo atraso brasileiro é do pacto pela impunidade entre classe política e STF. A culpa pelo atraso brasileiro é das leis que favorecem os políticos. A culpa pelo atraso brasileiro é do patrimonialismo.

A culpa pelo atraso brasileiro é do agronegócio latifundiário. A culpa pelo atraso brasileiro é das estatais, cabides de emprego e cheias de privilégios. A culpa pelo atraso brasileiro é do inchaço da máquina pública.

A culpa pelo atraso brasileiro é do FMI. A culpa pelo atraso brasileiro é do grande capital financista. A culpa pelo atraso brasileiro é do capitalismo predatório e da ideologia neoliberal. A culpa pelo atraso brasileiro é da falta de consciência de classe.

A culpa pelo atraso brasileiro é do funcionalismo público, que suga os recursos gerados pelo setor produtivo. A culpa pelo atraso brasileiro é das leis trabalhistas que sufocam o empreendedor. A culpa pelo atraso brasileiro é da má qualidade do serviço público.

A culpa pelo atraso brasileiro é da criação de Brasília, que deixou o povo longe do poder. A culpa pelo atraso brasileiro é do sistema político-partidário.

A culpa pelo atraso brasileiro é da mentalidade retrógrada das nossas elites. A culpa pelo atraso brasileiro é da inversão de valores. A culpa pelo atraso brasileiro é da cultura do jeitinho.

A culpa pelo atraso brasileiro é do Centrão. A culpa pelo atraso brasileiro é da esquerda que dominou os cursos de pedagogia e controla a educação brasileira. A culpa pelo atraso brasileiro é da direita que nunca permitiu uma verdadeira reforma agrária.

A culpa pelo atraso brasileiro é de Getúlio Vargas, que perverteu a noção de Estado. A culpa pelo atraso brasileiro é da burocracia estatal. A culpa pelo atraso brasileiro é do povo que, sem educação, não sabe votar.

A lista é longa – e não quero cansar o leitor mais do que já o cansei. No dia a dia, ouvem-se diferentes afirmações sobre a causa do atraso brasileiro. São ditas com contundência e convicção. Estariam ao nível da evidência. Só não as vê quem não quer, quem tem má-fé.

Diante desse estado de coisas, surge a questão: quantas gerações serão necessárias para que paremos de repetir as mesmas ideias simplistas, os mesmos chavões reducionistas, as mesmas perspectivas comodistas? Quanto tempo será necessário para que tenhamos vergonha de nossos diagnósticos simplórios, muitos deles tangenciando a infantilidade ou mesmo o puro engodo?

Não é que todas as ideias acima sejam equivocadas. Algumas delas certamente o são. No entanto, pretender que uma causa explique o atraso brasileiro é compreender mal o próprio atraso, numa visão superficial e infantil do problema. E pior: trata-se sempre de uma explicação que nada tem que ver conosco, sobre a qual não temos nenhuma responsabilidade e a respeito da qual temos baixíssima ou nenhuma capacidade de mudança. É puro choro.

É fácil atribuir aos outros a culpa pelo atraso do País. Há muitas ideias disponíveis no mercado da opinião pública, a depender do gosto de cada um. Mas será mesmo que esse atraso não tem nada que ver com cada um de nós? A responsabilidade é inteiramente dos outros?

Não raro, ouve-se gente cuja família faz parte da elite socioeconômica do País há gerações reclamando do Brasil como se o problema não tivesse nenhuma relação com suas escolhas e decisões, com suas prioridades, com suas limitações de conhecimento e de cultura, com sua baixa capacidade de trabalho e de transformação. Se todos, rigorosamente todos, estão isentos de responsabilidade, quem então seria o responsável pelo subdesenvolvimento brasileiro?

Não é questão de fazer uma caça às bruxas. O tema é de outra ordem. Enquanto o diagnóstico se resumir a culpar os outros, não há mudança possível – e as críticas se tornam uma birra infantil. Estéreis, em vez de transformarem, contribuem para manter tudo como está.

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ADVOGADO

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti

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