A vida traz notícias duras, das mais variadas naturezas, que afetam a cada um de nós de diferentes modos. Ela parece muito distante da vida ideal, daquilo que desejaríamos que fosse.
No ano passado, o ataque do Hamas contra a população israelense foi um desses fatos que puseram à prova a esperança. Não apenas pela brutalidade e falta de limites éticos, mas especialmente pela eficácia da ação terrorista. Atuaram de forma radicalmente desumana e, mesmo assim, obtiveram êxito em seus objetivos políticos. Sua ação contra a paz foi extremamente eficaz, também ao provocar a forte reação de Israel. É sempre triste – muito triste – constatar esse tipo de eficácia.
Noutra ordem de coisas, cito um fato nacional: a tolerância do Rio de Janeiro com o jogo do bicho e com os crimes nele envolvidos. Marcou-me seriamente a série Vale o Escrito (Globoplay, 2023). São eventos conhecidos, mas vê-los reunidos escancara a amplíssima tolerância, em todos os níveis, da sociedade e do poder público com a criminalidade. É uma espécie de crime perfeito, que ainda por cima é premiado e celebrado anualmente, a cada carnaval.
Noutro âmbito, mas também profundamente lamentável, foi ver, em pleno ano de 2023, um governo dito progressista indicar ao Supremo Tribunal Federal dois homens brancos. As tentativas de justificar o injustificável explicitaram uma vez mais as desigualdades vigentes na sociedade brasileira e amplamente toleradas por todos os cantos ideológicos. A representatividade nas instâncias de poder é ainda uma utopia – e, a depender da compreensão de alguns, uma tarefa que pode esperar.
Numa ordem não tão diferente de coisas, houve, em 2023, a maior chacina no Estado de São Paulo desde o massacre do Carandiru em 1992. Para piorar, a ação policial na Baixada Santista foi aplaudida pelo governador e contou com a aprovação de parcela significativa da população. Além disso, no contexto da operação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que o uso de câmeras nos uniformes policiais não deve ser obrigatório. Foram preservadas, assim, as condições para a continuidade da violência estatal.
Outro fato pontual, mas paradigmático, foram os aplausos para decisão judicial no Rio de Janeiro autorizando prender, nas praias, adolescentes sem flagrante, apenas com base na raça – ou no que a polícia bem entender. Haja malabarismo interpretativo. A Justiça conseguiu “compatibilizar” a Constituição de 1988 com a limpeza étnica, em nome da ordem pública. Estamos em 2024 e muitos acham que a segurança pública autoriza a polícia não apenas a desrespeitar direitos, mas a ser abertamente racista.
Além disso, tão logo começou o ano teve vereador em São Paulo que, para ganhar notoriedade política, buscou criminalizar a atuação do padre Júlio Lancellotti, cujo ministério é reconhecidamente voltado aos mais pobres. Formou-se imediata resistência contra a desfaçatez, mas o objetivo político da manobra foi alcançado.
Diante de tudo isso – ao que cada um poderia acrescentar outros fatos; a lista acima é ilustrativa e pessoal –, como escrever que o futuro é bonito? Seria uma piada de mau gosto? Penso que não. O futuro é bonito porque ele não está determinado. O futuro não é dado pelo passado. Ele está por ser construído.
Não se afirma que basta o esforço pessoal para que a vida seja bonita, para que a vida se transforme naquilo que almejamos. A vida real não é, nem nunca será, a vida sonhada. Em 2024, continuará havendo notícias tristes, nos mais variados âmbitos, que colocarão à prova nossa esperança. O ponto é outro: a vida não está condicionada, de forma absoluta, pelas circunstâncias. Somos nós que escolhemos as reações que queremos ter. O que os outros fazem não está nas nossas mãos controlar. Mas está nas nossas mãos controlar como reagimos, como refletimos, como julgamos os acontecimentos, como procuramos entender os problemas, como buscamos ampliar o olhar.
Há situações cuja mudança exige o trabalho de gerações. As árvores não crescem de um dia para o outro. Mas isso não é razão para não agir, para cruzar os braços, para apenas reclamar. É motivo para plantar: plantar hoje, plantar amanhã e depois de amanhã, ensinar a plantar aos nossos filhos e aos nossos netos, aprender a plantar com os nossos filhos, os nossos netos, os nossos amigos, os nossos vizinhos, os nossos colegas – também com os que têm outra visão de mundo, outra orientação política.
Não se deve ignorar a dimensão do tempo – a dimensão da mudança – na vida humana. Não somos estáticos. Somos seres temporais: sujeitos ao tempo e, por sua vez, senhores do tempo. A possibilidade de aproveitar o tempo, de utilizá-lo da melhor forma possível, está sempre presente.
Talvez aqui esteja uma das grandes razões para a esperança. Não é questão de pensar positivamente, de iludir-se com cenários ideais, de ignorar os problemas e as dificuldades. Trata-se de constatar que a vida é caminho. O futuro bonito não é uma ideia, tampouco uma expectativa longínqua. São os passos que cada um dá no dia de hoje.
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ADVOGADO
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