EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Advogado e Jornalista

Opinião | Os privilégios que não vemos

Não rejeitamos ampliar o nosso conhecimento, apenas temos plena convicção de que as coisas são do jeito que percebemos

Foto do author Nicolau  da Rocha Cavalcanti

Nossa particular posição na vida – nossa educação familiar, nossa formação acadêmica, nossa experiência profissional, nossas convicções, nossas crenças, nossas leituras, nossos amigos, nossas viagens, nossos afetos, nossos hobbies, nossas decisões e tudo mais que vamos vivendo – confere-nos uma determinada visão do mundo e da vida. Trata-se de um fenômeno incrível. Seja qual for sua origem ou formação, cada um tem em si algo que nenhuma outra pessoa tem: um específico conhecimento, uma particular percepção do mundo e da vida.

Ao mesmo tempo, isso significa que cada um de nós tem também seus pontos cegos. Aquilo que, por força da nossa particular posição na vida, temos mais dificuldade de ver. Não é uma questão de má vontade. É uma realidade decorrente de um fato inexorável: vemos o mundo e a vida a partir de um determinado ponto de vista. Nosso campo de visão não abarca tudo. Sozinhos não vemos tudo – e isso é um dos fundamentos da importância do jornalismo e da literatura para uma compreensão madura do mundo e da vida. Assim como o diálogo com pessoas de diferentes culturas e formações, a leitura de jornais e de livros nos coloca em contato com outras percepções e sensibilidades. Por meio do olhar dos outros, ampliamos o nosso próprio olhar.

Existem os pontos cegos individuais e existem também os coletivos, oriundos de situações específicas compartilhadas por um grupo de pessoas, como o trabalho profissional, as preferências culturais, a orientação política ou a posição familiar e social. Eles são ainda mais difíceis de serem detectados, pois as pessoas com quem convivemos na vida diária têm habitualmente os mesmos pontos cegos coletivos que nós. Nesse caso, as percepções falhas reforçam-se mutuamente, estabilizam-se, ganham ares de consenso.

Insisto: não é uma questão de má vontade, como se não quiséssemos ver. Ela está em outra camada, mais profunda, mais arraigada: não rejeitamos voluntariamente ampliar o nosso conhecimento, apenas temos plena convicção de que as coisas são do jeito que percebemos. No entanto, mesmo não sendo intencionais, esses pontos cegos coletivos geram consequências negativas sobre toda a sociedade.

Existe, por exemplo, uma percepção bastante difundida de que o Estado brasileiro é grande e inchado, concedendo vários privilégios a uma fatia do funcionalismo público, enquanto prejudica, por ação e por omissão, a iniciativa privada. Um dos principais sintomas seria a existência de uma alta carga tributária no País, onerando de forma excessiva o setor produtivo, mas sem haver a contrapartida de serviços públicos de qualidade.

Também muito difundida em alguns setores, há a percepção de que a Constituição de 1988 concedeu muitos direitos, especialmente em matéria social, mas não considerou o seu custo e a forma de financiá-los. Haveria um desequilíbrio estrutural, provocando um contínuo aumento dos gastos sociais, a representar um peso excessivo para o País.

Essas duas percepções apoiam-se em dados reais, mas também refletem uma específica perspectiva. Juntamente com outras críticas, elas integram um quadro de argumentos frequentemente repetidos, cujo resultado, no fim das contas, é dizer que a elite econômico-social tem muito a reclamar do Brasil. Ou melhor, a classe média alta, pois ninguém se vê como elite. Aqui, peço licença para ir aos números. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano passado, os 10% da população com maior rendimento domiciliar tiveram renda mensal média por pessoa de R$ 7.580. Nos 10% seguintes, a média foi de R$ 2.897. Por sua vez, os 10% de menor rendimento obtiveram renda mensal média por pessoa de R$ 210. Se olharmos o cenário maior, metade da população brasileira teve, em 2023, renda mensal média por pessoa de R$ 629.

Ora, será que no Brasil o grande problema é o modo como são tratados os 10%, os 20% da população com maior rendimento? Os números do IBGE revelam não apenas um país pobre e desigual. Eles mostram que nossa percepção de justiça pode estar distorcida. Talvez estejamos reclamando do Estado, como se ele nos tratasse mal, sendo que, na comparação com a realidade da população brasileira, somos incrivelmente privilegiados.

É interessante notar que os pontos cegos não são uma criação completamente imaginária. Eles têm apoio na realidade, mas, uma vez que consideram apenas uma parcela dessa realidade, são incompletos, o que produz desajustes de compreensão. Não será que nossa primeira indignação deveria ser com o modo como o Estado trata a população com renda mensal média de R$ 210? Não será que o sistema tributário é muito mais perverso com a faixa mais pobre? Será que a Constituição de 1988 fez muito mal em tentar assegurar um mínimo de dignidade a todos, ampliando a proteção social? Há vários modos possíveis de enfrentar e de responder a essas questões. Não há uma solução única. O ponto é: o modo como respondemos a elas diz muito quem nós somos. Queremos mudar a realidade social ou estamos satisfeitos com o que vemos atualmente?

*

ADVOGADO

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti

Advogado

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.