Guilherme Boulos (PSOL), deputado federal eleito por São Paulo e membro da equipe de transição do governo, fez críticas ao marco do saneamento, aprovado em 2020: “A posição da maior parte dos partidos que sustentam a coligação presidida pelo presidente Lula no próprio Congresso, quando foi votado o marco, é que é muito prejudicial o processo de privatização do saneamento. É muito prejudicial você ter uma agência reguladora como a Agência Nacional de Águas (ANA), com superpoderes e sem controle da sociedade”. Em tom de lamentação, Boulos disse que “revisão legal, a equipe de transição não tem prerrogativa de propor”, mas que proporá revisões infralegais. Enquanto se espera por essas propostas, preocupa desde já o flerte com múltiplos retrocessos.
Ao contrário do que se fez na energia, transportes ou telecomunicações, os serviços de água e esgoto ainda são prestados quase que exclusivamente por estatais contratadas sem licitação nem metas, mesmo após a Constituição determinar que todo serviço público fosse precedido por licitação e proibir tratamento privilegiado a estatais. O fracasso salta aos olhos. Nada expõe com mais crueldade a desigualdade no Brasil e, ao mesmo tempo, a ineficiência de um Estado obeso e aferrado a privilégios corporativos que os 35 milhões de brasileiros sem água potável e os 100 milhões sem coleta de esgoto.
O cenário é triplamente adverso. Primeiro, porque os índices nacionais estão abaixo dos de outros países nas mesmas condições econômicas. Depois, porque os investimentos não só são insuficientes, como vinham se contraindo; finalmente, pelas disparidades regionais: os Estados com estrutura mais precária (no Norte e no Nordeste) são justamente os que investem menos.
O marco rompeu essa máquina do atraso, sobretudo em três aspectos: a exigência de licitação e metas para os contratos; a padronização da regulação pela esfera federal; e a previsão de blocos regionais, combinando municípios rentáveis com deficitários, para que os primeiros ajudem a compensar as carências dos segundos. As garantias de segurança jurídica e competitividade já dão resultados: os primeiros leilões e concessões foram marcados por forte concorrência e altos ágios, elevando os investimentos em 15%. A expectativa para 2023 é de 18%.
Ainda há desafios, como a consumação da regulação da ANA, que uniformizará as normas pulverizadas entre milhares de municípios; reformas tributárias que aumentem a capacidade de arrecadação e investimento municipal; e um plano da União que priorize investimentos em localidades precárias.
Mas nunca se deve subestimar a vanguarda do atraso. O saneamento não é calamitoso por acaso. Mesmo depois do marco, lobbies corporativistas (sobretudo e não à toa do Norte e do Nordeste) tentaram no Congresso e na Justiça preservar os privilégios das estatais por mais 30 anos, e, neste ano, resistiram aos decretos federais que buscaram acelerar a adaptação de Estados, municípios e prestadoras ao marco.
Por décadas o monopólio estatal no saneamento perpetuou uma catástrofe sanitária e socioeconômica. Agora que um novo modelo começa a dar frutos, obrigando as prestadoras a comprovar condições técnicas e financeiras e atraindo investimentos privados – que, inclusive, desafogarão um poder público fiscalmente sufocado, permitindo-lhe canalizar recursos a prioridades sociais e, no setor do saneamento, às localidades mais carentes –, o deputado Boulos, em claro sinal de negacionismo, fala em “revisar” as regras do setor. Ao contrário do que ele sugeriu, a ANA não tem “superpoderes” sem “controle da sociedade”. Seus poderes foram conferidos pelo Congresso, visando à implementação de uma lei aprovada em longas e alentadas deliberações pelo Congresso, cuja regulação será controlada pelo Congresso.
O marco do saneamento possivelmente servirá à sociedade como o maior teste para medir se o compromisso do novo governo de Lula, do PT e de seus aliados é com a realidade e a modernização ou com velhas ideologias estatólatras manifestamente fracassadas.