O governo Lula da Silva quer usar o caos do recente apagão em São Paulo como pretexto para tentar realizar o antigo sonho do petista de reduzir a autonomia das agências reguladoras, que têm como função disciplinar a prestação de serviços públicos cuja gestão foi privatizada. Se dependesse de Lula, como todos sabem, nem privatizações haveria; como é impossível revertê-las, o demiurgo busca interferir politicamente nas agências para que estas atuem conforme os interesses do governo.
Em guerra declarada com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, usou a crise no fornecimento em São Paulo para confirmar a ideia corrente no governo de alterar o sistema legal de mandatos não coincidentes entre diretores de agências e o presidente da República. A assincronia de mandatos é essencial à autonomia funcional, decisória e administrativa das agências para, como diz a lei, garantir a “ausência de tutela ou de subordinação hierárquica” ao governo de ocasião.
Em entrevista recente, buscando justificar o empenho na mudança da natureza das agências, Silveira declarou que os reguladores não estariam apenas usufruindo de autonomia, mas de “supremacia, soberania individualizada”. E defendeu a extinção dos mandatos, para que diretores possam ser nomeados e demitidos a qualquer tempo. Lula da Silva já pediu à Advocacia-Geral da União estudo sobre a possibilidade de mudança no modelo.
Por trás da campanha depreciativa está o traço autocrático de um governo que não admite instituições fiscalizadoras de Estado que atuem sem o jugo do Planalto. Sem tirar nem pôr, é a mesma reação à autonomia do Banco Central, até agora impassível diante dos repetidos apelos populistas de Lula para baixar a todo custo a taxa de juros. A Aneel é mais um exemplo da tentativa de impor subserviência a órgãos cujo desempenho é baseado na independência.
Outro caso a ilustrar a tendência é o da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Para ocupar a direção-geral, com o término do atual mandato em dezembro, deve ser indicado o secretário de Petróleo e Gás do MME, Pietro Mendes, que preside o Conselho de Administração da Petrobras, nomeação que contrariou impedimentos internos da petroleira. O truque usado pelo governo Lula da Silva, como se sabe, foi se valer de uma liminar do então ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski – hoje ministro da Justiça de Lula – para desconsiderar o conflito de interesses e manter o secretário de Silveira na Petrobras.
Com Mendes à frente da ANP, o governo almeja, por certo, passar a contar com uma parceria sem o contraditório em políticas de seu interesse, como os critérios de exigência de conteúdo local, por exemplo. A intenção parece ser a de transformar os reguladores em apêndices do governo, desprezando seu verdadeiro papel. Criadas a partir de 1997, no governo FHC, as agências foram consequência da privatização de serviços públicos, com o objetivo de garantir a boa prestação desses serviços. Não é de hoje que essa atuação incomoda o lulopetismo.
A primeira tentativa de Lula de tirar-lhes a autonomia foi em 2003, quando constituiu um grupo de trabalho para discutir um novo formato de atuação. Como sói acontecer com “grupos de trabalho” no governo, não deu em nada. Em 2007, em meio a uma crise na aviação civil, houve nova investida para emplacar o projeto que transferia poder das agências aos ministérios. Do mesmo modo que agora, com a Aneel, na ocasião o governo endureceu as críticas à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) durante o “apagão aéreo” que se seguiu à queda de um avião da Gol após a colisão com um jato Legacy, que causou 154 mortes. Também daquela vez, a ofensiva não surtiu efeito.
O oportunismo em situações de crise para tentar mudar a atividade reguladora não é, portanto, novidade no lulopetismo. Se empenho semelhante fosse concentrado em indicações eminentemente técnicas – e não de apadrinhados políticos – para cargos ainda vagos nas agências, o Brasil sairia ganhando. Também ajudaria se recompusesse o pessoal das agências, já que estão desfalcadas de um terço de suas equipes e têm dificuldade extra de cumprir sua importante função.