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O anêmico ‘Consenso de Brasília’

Fracasso da cúpula sul-americana mostra a resistência à pretensão de Lula de reviver a Unasul como eixo de integração e o forte dissenso em torno de uma agenda ideológica falida

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Por Notas & Informações
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Se o presidente Lula da Silva esperava confirmar sua liderança na América do Sul ao reunir os mandatários da região no último dia 30, em Brasília, fracassou. Suas ambições de relançar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e de promover a criação de uma moeda comum para o comércio da região submergiram na redação final do documento do encontro, o Consenso de Brasília. A menção aos dois projetos foi ceifada por exigência de alguns dos líderes presentes. O texto, anódino, refletiu o dissenso em torno de uma agenda ideológica falida.

Houve mal-estar entre os líderes com o discurso de Lula, na véspera, de que a Venezuela é vítima de “preconceito” dos Estados Unidos e de todos os que insistem em denunciar a ditadura de Nicolás Maduro, tratado pelo presidente brasileiro como legítimo governante de uma democracia plena. No encontro de cúpula, Lula dobrou a aposta no constrangimento, ao reiterar seu conselho ao tiranete venezuelano para valer-se “da verdade” em sua “narrativa” sobre a suposta natureza democrática do regime chavista. Além de envergonhar o Brasil, Lula constrangeu vários de seus pares, que exigiram a inclusão, no breve documento final, de um compromisso da América do Sul com a democracia e o Estado de Direito.

Os presidentes do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, e do Uruguai, Luis Lacalle Pou, de centro-direita, expressaram seu mal-estar com o tratamento conferido pelo Brasil à ditadura da Venezuela. Nas entrelinhas, evidenciaram o limite real da liderança de Lula na região.

Tão grave como o alerta do líder uruguaio de que aceitar a “narrativa” venezuelana seria “tapar o sol com o dedo”, foi a contestação pública de Boric, que cobrou de Caracas o respeito aos direitos humanos. “Não se pode varrer para debaixo do tapete ou fazer vista grossa sobre princípios importantes. Respeitosamente, discordo do que Lula disse. Não é uma narrativa, é uma realidade, é séria, e tive a oportunidade de vê-la nos olhos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos que vivem na nossa pátria e que exigem uma posição firme e clara”, afirmou o chileno à imprensa.

No mesmo espectro político de Boric, Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do grupo M-19 e primeiro presidente de esquerda da Colômbia, criticou, em entrevista ao Estadão, a falta de união da América do Sul em torno de projetos. Em outras palavras, Petro quer menos discurso e mais ação, razão pela qual deve ter saído frustrado de uma cúpula cujo único propósito era reafirmar Lula como líder regional, tendo como eixo a ideologia retrógrada que norteou a Unasul nos anos áureos do chavismo, do kirchnerismo e do lulopetismo. Do drama dos refugiados venezuelanos que invadem sobretudo a Colômbia para fugir da miséria e da repressão chavista, pouco se falou.

O encontro de Brasília revelou-se outra oportunidade perdida para a política externa brasileira. Mais do que desejável, é imperativo reconstruir e dinamizar a integração comercial, energética e financeira da América do Sul em bases pragmáticas e democráticas. Os desafios do desenvolvimento sustentável, da transição energética, do aquecimento global e da desigualdade social são comuns aos 12 países, razão pela qual a superação desses desafios só será possível se houver uma agenda regional de diálogo sobre planos concretos e em contexto de fortalecimento das instituições.

O governo brasileiro, portanto, faria bem se investisse tempo e esforço na construção dessa integração, mas as bases para isso não podem ser ideológicas, como corretamente argumentou o presidente uruguaio a respeito da intenção de Lula de ressuscitar a Unasul. Mas o anêmico Consenso de Brasília mostra que o continente está longe de articular um plano em comum, sobretudo porque o presidente da principal economia regional, que naturalmente deveria liderar esse processo, deixou-se embalar pela nostalgia dos tempos em que a Unasul era o corolário do projeto de conversão da América do Sul em paraíso da esquerda atrasada e antidemocrática.