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O bom senso parcial de Barroso

Seu voto sobre o Marco Civil faz algum progresso em relação aos de seus colegas. Mas, no geral, referenda uma censura draconiana que sufocará a livre manifestação nas redes

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Por Notas & Informações
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Seguramente constrangido com os votos de seus colegas Dias Toffoli e Luiz Fux a respeito do Marco Civil da Internet, ora em debate na Corte, votos esses que já têm lugar garantido na antologia dos atentados à Constituição, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, tomou a decisão incomum de antecipar seu voto. Presume-se que Barroso pretendia temperar a discussão, que caminhava para chancelar a mordaça na internet. A fim de encontrar uma forma de discordar da sanha censória de Toffoli e Fux sem desmoralizá-los, Barroso disse que o artigo 19 do referido Marco Civil, aquele que versa sobre a responsabilidade das redes sociais, é “parcialmente” inconstitucional. Como não liberou a divulgação do voto, só suas “anotações”, não se sabe bem como ele fundamentará essa tese sem ferir a hermenêutica jurídica. Mas pode-se dizer, sem ferir a lógica, que seu voto é só parcialmente sensato.

O artigo 19 estabelece que a responsabilidade pelos danos de alguma publicação é de seu criador, e as plataformas só se tornam corresponsáveis se desobedecerem a uma ordem judicial de remoção. O artigo 21 estabelece uma exceção caso as redes sejam notificadas extrajudicialmente sobre conteúdo contendo cenas de nudez ou sexo não autorizadas.

Assim, cada um é livre para dizer o que bem entender, e responde pelo que disser. As redes podem estabelecer regras definindo o que é ou não aceitável, e cada um é livre para aderir ou não a essas regras. Se um usuário julga que seu conteúdo foi removido em violação a essas regras, pode recorrer à Justiça. Se uma pessoa julga que foi vítima de algum conteúdo ilícito, pode recorrer à Justiça. A Justiça tem a prerrogativa de obrigar as redes a respeitar suas próprias regras e de obrigar os usuários a respeitar a lei. Pelo regime vigente, só a Justiça pode determinar se um conteúdo é ilícito e obrigar as redes a removê-lo. Caso se recusem, passam a ser corresponsáveis. A liberdade de expressão é a regra; a censura, a exceção, a ser aplicada pelo Judiciário após o devido processo legal.

Evocando vagamente a proteção de direitos fundamentais, Toffoli e Fux entenderam que esse regime é inconstitucional. A seu ver, a Constituição exige que as redes censurem conteúdos após a notificação de quem se sente ofendido. Como resumiu Fux, “notificou, tira; quer botar de novo, judicializa”. Toffoli propôs um “decálogo contra a violência digital e desinformação”. Mesmo sem serem notificadas, as redes seriam responsáveis por supostos crimes, como “qualquer espécie de violação contra a mulher”, fatos “descontextualizados” ou “discursos de ódio”. Alexandre de Moraes sugeriu ainda “atos antidemocráticos”.

A Justiça pode levar anos para decidir se alguma manifestação se enquadra num ilícito, mas os ministros exigem ação imediata das redes. A prevalecer essa tese, as pequenas plataformas, sem condições de fazer esse monitoramento ostensivo, sairão do mercado, e as grandes suprimirão qualquer conteúdo minimamente controverso para se furtar à responsabilização – levada às suas últimas consequências, por sinal, quem administra um site ou perfil, por menor que seja, será responsável por qualquer manifestação em suas caixas de comentários.

Barroso ensaiou um freio a essa terceirização da censura. “Não se deve impor às plataformas o controle prévio de todos os conteúdos gerados por terceiros, nem as sujeitar a uma obrigação geral de vigilância.” Para conteúdos relacionados à honra (injúria, calúnia, difamação), deveria se manter a obrigatoriedade de ordem judicial, pois, do contrário, “a próxima vez que alguém disser que o governador é mentiroso ou medíocre, isso estaria sujeito à remoção, o que seria altamente limitador do debate público”.

No entanto, Barroso entende que para todos os demais crimes deveria valer o modelo de notificação e remoção, exceto em caso de “dúvida razoável”. Mas quem define o que é “razoável”? Na prática, em que pese toda a circunspecção de Barroso, o modelo do artigo 19 será a exceção, e a vigilância draconiana, a regra.

O voto de Barroso é um progresso, mas só parcial. No mais importante, referenda o retrocesso proposto por seus colegas.