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O debate político não é refém do fundamentalismo

O projeto que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio mostrou o descolamento entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa

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Por Notas & Informações
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Por desinformação, preconceito ou má-fé, uma parte considerável do mundo não evangélico observa, com desconfiança e temor, a notável ascensão das igrejas evangélicas brasileiras. Muitos também confundem a população evangélica e seus representantes e líderes religiosos, como se fossem um só corpo e uma só mente – algo monolítico, uma base ao mesmo tempo genérica e uniforme, composta por pastores e parlamentares populares, influentes e barulhentos, e uma população fiel, obediente e facilmente manipulável. O debate sobre o Projeto de Lei (PL) 1904, que equipara a pena do aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, demonstrou que não é bem assim: não somente há muito mais diversidade nos grupos evangélicos do que sugere o senso comum, como há um descolamento razoável entre a bancada evangélica no Congresso e a parcela da população que representa.

Na semana em que a Frente Parlamentar Evangélica – liderada pelo autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), sob a bênção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – trabalhava pela urgência da tramitação, nas ruas e nas redes sociais grupos evangélicos se mobilizaram para contê-lo. Sem liderança puxando o trio, mulheres de todos os credos foram às ruas protestar; sem compromisso com a bancada parlamentar, mulheres cristãs de diversas matrizes religiosas lançaram um manifesto e organizaram um ato em Brasília. A confirmação do descolamento veio com os números trazidos pelo Datafolha: 57% dos evangélicos do País são contrários ao PL, número que é ainda maior entre os católicos (68%). Em outras palavras, engana-se quem percebe o perfil religioso e conservador do brasileiro como fundamentalista. Mais: fundamentalistas são minoria – e se concentram nas hostes extremistas no Congresso. Segundo o Datafolha, 66% da população rejeita o projeto.

Ainda que parlamentares prometam voltar à carga quando o clima esfriar, as pressões obrigaram o recuo no que pareceu uma tentativa da extrema direita de emparedar o governo. Triunfaram no início: o presidente Lula da Silva ficou em silêncio até as manifestações de rua e as primeiras pesquisas dando conta da derrota do PL nas redes sociais. Lula chamou de “insanidade” a tentativa do projeto, mas só o fez quando se sentiu à vontade diante do racha aparente no mundo evangélico.

O presidente lidera uma esquerda que costuma enxergar evangélicos como outro Brasil, outra gente. A confusão mais comum associa evangélicos à extrema direita, o que ajuda a ampliar o preconceito contra a população religiosa. Com a emergência do bolsonarismo, pastores influentes passaram a atuar também na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, assim como na ameaça direta dentro de espaços religiosos. São dois mundos distintos, mas que se entrelaçam, pois a ação de um contamina e reforça o preconceito sobre o outro.

Ocorre que evangélicos são muito mais do que isso. Pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (Iser) vêm mostrando que suas aspirações passam tanto pelas crenças quanto por elementos reais do cotidiano. Estudos informam que a maioria evangélica é hoje feminina e de baixa renda e tem muita clareza sobre o que melhora ou piora suas condições de vida. “São pessoas que se movem por necessidades práticas e não apenas por fake news que viram trending topics nos grupos de WhatsApp da Igreja”, escreveu a pesquisadora Ana Carolina Evangelista em artigo publicado no UOL.

Dilemas reais das mulheres evangélicas envolvem a família, a segurança e a situação econômica, categorias que estruturam a vida de boa parte dos brasileiros, ultrapassam o moralismo explorado pela extrema direita e confundem a cabeça do lulopetismo. A resistência ao PL é parte desses dilemas. Se moral e ideologicamente são contra a legalização do aborto, veem o estupro como crime inaceitável, portanto é ultrajante para muitas evangélicas a ideia de que a mulher, já vítima do estuprador, seja condenada à prisão. Esse componente crítico só é impensável para quem enxerga obediência absoluta ao estereótipo do crente fundamentalista. E para lideranças parlamentares que, cada vez mais fisiológicas, olham para cima – neste caso, não para o Céu, e sim para os seus projetos de poder.

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