Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O despertar adiado

Ao prorrogar prazo para definir plano global contra pandemias, países-membros da OMS ampliam o risco: quanto mais longe da covid-19, menos preparados estaremos contra nova catástrofe

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Por Notas & Informações
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Confirmou-se o que se avizinhava, e os 194 países que integram a Organização Mundial da Saúde (OMS) terão um ano para concluir o que não conseguiram fazer em mais de dois anos: aprovar um acordo de prevenção contra futuras pandemias. Em 2021, ainda em meio aos milhões de mortos deixados pela covid-19, as nações concordaram em preparar um ambicioso plano global para enfrentar ameaças futuras – algum patógeno desconhecido e possivelmente mais contagioso, mortífero e resiliente que o coronavírus. Em abril, após nove rodadas de negociações, a conclusão se mostrava difícil (ver o editorial A próxima pandemia vem aí, de 8/4). Agora os prognósticos se consumaram, com os países jogando a solução para o “prazo máximo de um ano”. O comunicado deu ênfase ao futuro, mas no fundo se trata de uma pá de cal sobre o passado de 30 meses de esforço. Um revés a um só tempo incompatível com o gigantismo da necessidade global e compatível com o tamanho dos obstáculos, muitos dos quais difíceis de superar.

A necessidade vem das lições deixadas pela covid-19, em que se viu falta de preparação, coordenação e solidariedade. Constatou-se ali que, além do conhecimento científico, a cooperação é o melhor antídoto contra epidemias. Apesar de ciclos horrendos, como aids, ebola e covid-19, no século 21 as epidemias passaram a matar numa proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período da história – passando pela Peste Negra no século 14 e o surto mortal de gripe do início do século 20. De lá para cá, a humanidade se tornou mais vulnerável a epidemias, e hoje um vírus pode viajar entre a Ásia, a Europa e as Américas em menos de 24 horas. Em compensação, ainda que tais surtos sejam proporcionalmente menos mortais, o fato é que patógenos infecciosos não conhecem fronteiras nem distinguem classes, e, se uma parte do mundo estiver desprotegida, todo o mundo estará.

Já os obstáculos são muitos e em múltiplas frentes – a principal delas na abordagem One Health (“Uma Só Saúde”), que promove a cooperação em todos os níveis para enfrentar pandemias, mudanças climáticas e outras ameaças. Isso inclui, por exemplo, melhorar a vigilância sanitária no comércio de produtos agrícolas. Países em desenvolvimento temem que obrigações do gênero possam ser usadas para criar barreiras comerciais, enquanto nações desenvolvidas argumentam que, sem essa abordagem, a OMS pode levar tempo demais para declarar emergências. Há também impasses na transferência de tecnologia, com disputas centradas nos direitos de propriedade intelectual. Outro conflito envolve o acesso rápido a patógenos e suas sequências genéticas, a distribuição facilitada e coordenada de vacinas (uma das máculas da covid-19) e a repartição de benefícios financeiros.

Não são problemas triviais, e só quem enxerga o mundo com lentes binárias achará que a ausência de solução é fruto de mera má vontade dos países ou da maldade congênita de seus representantes. Não é. São desafios que exigem cálculos apurados de custo-benefício e análise de causas e consequências. Por exemplo, mexer nos direitos de patentes pode reduzir o incentivo para o desenvolvimento de vacinas; por outro lado, não interferir pode prejudicar a escala e a equidade da distribuição. Nesses casos, porém, a inação resultará em desproteção do planeta, ampliando riscos já elevados. O tempo é um desses perigos. Quanto mais distantes estivermos da covid-19, mais escassa será a memória e, com efeito, menor será o sentido de urgência e o interesse político. Nada tão humano quanto essa espécie de amnésia coletiva, em que o esquecimento substitui a pressão ante uma emergência.

Aos envolvidos, contudo, resta dizer: os vírus em circulação no planeta e os novos que surgem todos os anos vencerão a batalha contra a humanidade se o isolacionismo e a desconfiança superarem a cooperação. Chegar a um acordo – nesta e em outras agendas que exigem multilateralismo eficaz, como a mudança climática – não é nem jamais será simples. Mas muito mais difícil será se não houver um plano concertado, sobretudo porque a dúvida não é se o mundo enfrentará novas catástrofes no futuro, e sim quando e como. Uma projeção sombria como um alerta para um inadiável despertar.