O levantamento segundo o qual 17 templos são abertos por dia em média no País traz à tona um tema difícil de ser tratado, mas nem por isso menos real ou menos daninho: a manipulação religiosa, isto é, o uso da religião para fins políticos ou financeiros e a utilização da vulnerabilidade social e econômica para dominação social e política. É uma modalidade de coronelismo, profundamente perversa, que subjuga parcelas crescentes da população à condição de subcidadania.
O tema exige muito cuidado. A liberdade religiosa é um enorme bem para a sociedade, parte essencial dos direitos fundamentais. Sem liberdade religiosa, não há cidadania. Além disso, grandes conquistas civilizatórias foram motivadas por ideais religiosos, como o movimento abolicionista no século 19.
O Estado laico não tem uma religião oficial. Ele é absolutamente incompetente para fazer qualquer afirmação em matéria teológica. Consequentemente, ele também não vê as religiões – nenhuma delas – como inimigas. Ao contrário, reconhecendo a profunda atuação social e humanitária de tantos credos, o poder público trabalha em parceria com muitas igrejas em várias áreas, como saúde e educação. Mais do que uma relação de oposição ou de conflito, o Estado Democrático de Direito – mantendo-se rigorosamente isento nas questões especificamente religiosas – vislumbra nas igrejas uma realidade humana e social que merece ser preservada e respeitada.
Esse é o espírito consagrado na Constituição de 1988, que reconheceu e protegeu a liberdade religiosa. Vendo nas diversas manifestações religiosas um importante bem social, o legislador constituinte estabeleceu a imunidade tributária das igrejas. “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto”, diz o art. 150, VI, b. Ver no fenômeno religioso, seja qual for sua matriz espiritual ou filosófica, uma oposição ao Estado Democrático de Direito é manifestamente inconstitucional: é reconhecer que não se entendeu nada sobre a liberdade própria de uma democracia. O Estado contemporâneo não vem dizer como os cidadãos devem viver – em que devem acreditar ou como devem amar –, e sim assegurar o espaço de liberdade para que cada um, respeitando a lei e os direitos dos outros, viva como bem entender.
As religiões fazem parte do passado, do presente e do futuro do País, de modo que integram nosso patrimônio histórico, arquitetônico, social e cultural, mas todo esse panorama formidável não esconde o fato de que, sob aparência de fenômeno religioso, há muita gente aproveitando-se da condição de vulnerabilidade de outros cidadãos para fins políticos e financeiros. No Brasil, fundar uma igreja virou, muitas vezes, um lucrativo negócio. A imunidade tributária, cujo objetivo é assegurar a liberdade religiosa da população, transformou-se em ocasião de enriquecimento. Não é nenhum exagero: ao longo das últimas décadas, lideranças religiosas acumularam milhões.
No ano passado, criticou-se, neste espaço, “o uso abusivo do estatuto especial das igrejas para fazer proselitismo eleitoral” (ver o editorial Púlpito não é palanque eleitoral, do dia 13/8/2022). Além de constituir uma manipulação de liberdades fundamentais, a prática é vedada pela legislação eleitoral. O problema já foi tratado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), algum limite às atividades eclesiásticas é “medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”.
O País não pode fingir que o problema da manipulação religiosa não existe, sob pena de permitir a exploração de cidadãos por seus iguais. Não é fácil estabelecer critérios para a distinção entre o que é religião e o que é instrumentalização da religião. Mas não cabe abdicar dessa tarefa. Só será possível defender efetivamente a liberdade religiosa se, enquanto sociedade, soubermos o que não é liberdade religiosa.