A jornalista filipina Maria Ressa, laureada com o Nobel da Paz em 2021, lançou um alerta sobre os efeitos corrosivos das redes sociais no sistema democrático. Em 2024, quase metade da população mundial irá às urnas, “mas com muito menos barreiras de proteção”, disse em entrevista ao Valor. Primeiro, porque as plataformas estão reduzindo investimentos em equipes e protocolos de moderação. Segundo, porque as rivalidades geopolíticas intensificam as operações de desinformação – e, como disse Maria Ressa, “a propaganda e a guerra de informação estão atacando no nível celular das democracias”. Por fim, porque a relutância em compartilhar receitas auferidas com a divulgação de conteúdos produzidos pela imprensa está levando as plataformas a simplesmente boicotar notícias publicadas conforme os padrões éticos e técnicos do jornalismo profissional e independente – ao mesmo tempo que os algoritmos desenhados para gerar engajamento a qualquer custo privilegiam as “notícias” produzidas por indivíduos sem qualquer compromisso com a verdade dos fatos e a objetividade.
A cada dia, mais pesquisas catalogam indícios de que as redes amplificam a polarização e a desinformação. Por outro lado, propostas de regulação costumam gerar apreensão sobre limitações à liberdade de expressão. Mas a questão sobre se as redes devem ou não ser reguladas é em certa medida ociosa. Elas já são reguladas por seus pouquíssimos donos, meia dúzia de bilionários que tem o poder de reprimir ou viralizar ideias, conforme seus interesses comerciais. A questão é como o Estado deve regular essa autorregulação com incentivos para que ela convirja ao interesse comum, maximizando os benefícios das redes e minimizando seus danos.
As redes fazem dinheiro estimulando o engajamento dos usuários, vigiando o seu comportamento e, através disso, canalizando publicidade. Não é só que os algoritmos sejam indiferentes às virtudes que tornam as democracias sadias – relações sociais com altos níveis de confiança, instituições fortes e histórias compartilhadas –, mas, na busca por frisson, estimulam conteúdos não raro nocivos a essas virtudes. Pesquisas mostram que esse modelo distorce o debate no ambiente digital, amplificando a voz de minorias de provocadores e moralistas que intimidam maiorias moderadas, forçando-as a ficar em silêncio.
Por essa razão, ativistas insuspeitos da liberdade de expressão, como Ressa, advogam que as redes sejam responsabilizadas pelos conteúdos que divulgam, como qualquer outra mídia ou publisher. O risco desse tipo de visão é que, ao ignorar a especificidade das redes, ela pode incorrer no excesso oposto e reprimir seus benefícios ao pluralismo de ideias.
Mídias sociais são intermediárias entre veículos neutros – como redes de telefonia ou provedores de internet – e veículos editorializados – como jornais ou TVs. Os conteúdos que veiculam são produzidos por terceiros e – salvo em casos manifestamente ilegais, como pornografia infantil, ou declarados ilegais pelo Judiciário – não deveriam ser responsabilizadas por eles. Sem essa imunidade intermediária, as redes tenderiam a uma cautela draconiana, removendo todo conteúdo minimamente controverso. No entanto, a partir do momento em que os conteúdos são impulsionados, as redes assumem uma corresponsabilidade pelas consequências de sua propagação.
Por esta razão, um quadro regulatório deveria focar menos na responsabilização das redes pelos conteúdos em si, e mais em transparência e regras para os sistemas de distribuição. Nos códigos de construção civil, as construtoras não são responsáveis por todo dano que acontece num edifício (como um incêndio), mas podem ser responsabilizadas por um projeto que contribua para esses danos (como o uso de materiais inflamáveis). Analogamente, o responsável direto por um conteúdo danoso nas redes é o seu produtor. Mas elas podem ser responsabilizadas por uma estrutura que turbine a propagação desse dano.