A Constituição confere ao presidente da República o poder de vetar, integral ou parcialmente, um projeto de lei aprovado pelo Congresso, que considere ser inconstitucional ou contrário ao interesse público. Esse importante controle está sendo, no entanto, frequentemente subvertido pelo presidente Jair Bolsonaro, como se viu no dia 17 de março, numa demonstração de descaso com a Constituição e com o interesse público.
A manobra se dá da seguinte forma. Jair Bolsonaro apõe vetos a projetos de lei, mas depois, na apreciação desses vetos pelo Congresso, não apenas libera muitas vezes a base governista para derrubá-los, como às vezes trabalha ativamente para restabelecer dispositivos que ele mesmo vetou.
Surgem, então, as perguntas. A inconstitucionalidade que antes motivara o veto sumiu por passe de mágica? E a defesa do interesse público, alegado fundamento de muitos vetos, foi esquecida no caminho?
Um exemplo da manobra são dois vetos derrubados, com aval do presidente Jair Bolsonaro, no dia 17 de março, referentes a dívidas fiscais e previdenciárias de igrejas. Em setembro de 2020, o Congresso aprovou duas medidas que, em plena crise fiscal, conferiram uma bilionária ajuda para as igrejas. Segundo cálculos do próprio governo, essa ajuda deve representar, nos próximos quatro anos, um custo aos cofres públicos de R$ 1,4 bilhão, em renúncia fiscal.
O projeto de lei aprovado por deputados e senadores estendeu equivocada e escandalosamente a imunidade constitucional das igrejas (“é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto”) à cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Além disso, perdoou dívidas de igrejas relativas a essa contribuição.
O segundo dispositivo aprovado pelo Congresso anistiou multas e outras cobranças de natureza previdenciária aplicadas sobre a prebenda, como é chamada a remuneração de pastores e líderes do ministério religioso.
É de estranhar, em primeiro lugar, que entidades “religiosas” façam distribuição de lucro, o que a rigor deveria levar a um questionamento se essas entidades fazem jus à imunidade tributária prevista na Constituição.
O problema, no entanto, é ainda mais grave. Nos últimos anos, a Receita Federal identificou manobras de igrejas para distribuir lucros e remuneração variável de acordo com o número de fiéis sem o devido pagamento das contribuições sociais, como a CSLL. Daí nasceram as dívidas para as quais as igrejas almejam o perdão – e a futura e irrestrita isenção.
Ao vetar os dois dispositivos em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não houve a devida compensação fiscal, o que poderia configurar crime de responsabilidade caso sancionasse as medidas. No entanto, no mesmo dia em que os vetos foram anunciados, Jair Bolsonaro escreveu em uma rede social: “Confesso, caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo”.
Ou seja, Jair Bolsonaro deixava claro que seu comportamento não atendia a fins constitucionais ou ao interesse público. Sua paradoxal atuação tinha tão somente o objetivo de buscar a irresponsabilidade jurídica – não lhe ser imputado crime de responsabilidade – e política – caso fosse parlamentar, votaria pela derrubada do veto mesmo sabendo que o veto simplesmente cumpria normas orçamentário-financeiras, ou seja, seguia apoiando essas igrejas e os interesses financeiros de suas lideranças.
Nesse diapasão, no dia 17 de março, foi derrubada à balaiada uma longa série de vetos, que, além das igrejas, envolviam Lei de Falências, Código de Trânsito, Programa Casa Verde e Amarela e Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust), entre outros. Esse modo de atuar de Jair Bolsonaro, trabalhando pela derrubada de seus próprios atos, é a perversão da política. Em vez de assumir sua competência constitucional e a correspondente responsabilidade, Bolsonaro deseja isentar-se dos deveres politicamente custosos. A conta vai, uma vez mais, para o cidadão.