Jair Bolsonaro é conhecido mundialmente por minimizar a ameaça da covid-19, sabotar medidas de contenção e incentivar tratamentos não comprovados. Entre todos os líderes globais, o presidente se consagrou como o arquétipo do negacionista. Não à toa, ele tem sido bombardeado por acusações de crimes comuns, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade.
A Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, solicitou ao procurador-geral da República que o presidente seja denunciado à Suprema Corte por crimes de perigo para a vida ou a saúde, infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verbas e prevaricação. A Ordem também denunciou Bolsonaro à Câmara Interamericana de Direitos Humanos. Entre os mais de 60 pedidos de impeachment represados no Congresso, vários se fundamentam na conduta do presidente ante a pandemia. Na opinião pública, apesar dos esforços do Ministério da Justiça para enquadrar cidadãos na Lei de Segurança Nacional, viralizou o epíteto “genocida”.
Mas aparte as responsabilidades criminais e políticas, é válido indagar sobre a responsabilidade moral de Bolsonaro. Qual seria a correlação entre o seu comportamento e a carnificina do vírus?
Recentemente, a Comissão de Políticas Públicas da revista médica The Lancet publicou um relatório sugerindo que o ex-presidente Donald Trump foi responsável por 40% das mortes por covid nos EUA. Em que pese o prestígio científico do periódico, entre tantas variantes conjunturais e estruturais, a tentativa de quantificar exatamente a influência direta de um líder pelo número de infecções e mortes é temerária. Mas nem por isso é impossível comprovar essa influência.
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, por exemplo, mensurou uma correlação entre os redutos eleitorais de Bolsonaro e a maior disseminação do vírus. “A mortalidade tem acelerado exatamente nos Estados e municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018 e onde o distanciamento social tem sido menor”, dizem os pesquisadores. “Neste sentido, o apoio político e eleitoral a Bolsonaro tem correlação direta com mortalidade: mais votos, menos vidas.”
Correlação, por óbvio, não implica necessariamente causalidade. É difícil determinar se a irresponsabilidade dos eleitores bolsonaristas resulta da influência do presidente ou do ideário afim que os levou a eleger um líder irresponsável, mas que se manifestaria independentemente dele.
Outra pesquisa publicada pela Universidade de Cambridge constatou que, nas cidades onde Bolsonaro teve maioria absoluta de votos no primeiro turno, o isolamento social cai tipicamente entre 10% e 20% por cerca de uma semana a cada diatribe negacionista do presidente, como, por exemplo, a sua participação em março de 2020 em manifestações na frente do Planalto ou o folclórico pronunciamento em rede nacional em que se referiu à doença como “gripezinha”.
Um levantamento do Globo mostrou que as notificações por efeitos adversos pelo uso de medicamentos não comprovados do “Kit Covid” promovido e distribuído pelo governo dispararam em 2020. Só no caso da cloroquina, o aumento foi de 558%. Um estudo da Fiocruz em Manaus concluiu que pessoas que fizeram “tratamento preventivo” tiveram maior taxa de infecção. Sentindo-se protegidas, essas pessoas relaxaram os comportamentos preventivos, expondo-se mais ao contágio.
Mesmo que não seja possível quantificar o número total de infecções e mortes causadas por Bolsonaro, um modelo matemático poderia facilmente computar as inúmeras aglomerações suscitadas por ele e calcular, só nesses casos, um número probabilístico. E já entraram para a história da infâmia nacional as invasões a hospitais após o presidente pedir a seus camisas pardas que “arranjassem um jeito” de “entrar e filmar” a ocupação de leitos.
Em uma mescla mal-ajambrada de ironia e vitimização, Bolsonaro resmungou: “Para a mídia, eu sou o vírus”. Não é. O vírus é o vírus. Mas entre todos os brasileiros, o presidente foi indisputavelmente quem mais o ajudou em sua marcha de destruição.