Há exatos dois anos, o Brasil assistia à invasão das sedes dos Três Poderes, incitada não por manifestantes que exerciam espontaneamente sua liberdade de expressão, mas por um violento grupo de falsos patriotas que, inconformados com o resultado das eleições presidenciais, apostaram na instabilidade e no caos. Liberticidas depredaram prédios públicos, destruíram obras de arte, atacaram de maneira infame nossas principais instituições e deixaram rastros de destruição, choque e espanto. Tudo filmado inclusive pelos próprios criminosos, decerto convictos de que não seriam punidos.
Ao longo de todo o tempo decorrido desde então, os adeptos do golpismo trataram de minimizar o que assistimos naquele dia. Ora argumentam que tudo não passou de simples “vandalismo”, ora dizem – como fez o ex-presidente Jair Bolsonaro, guru dos vândalos – que os presos são “chefes de família, senhoras, mães, avós”, isto é, gente incapaz de dar um golpe de Estado.
Isso mostra que o espírito do golpismo está mais vivo do que nunca. Pode-se discutir se o 8 de Janeiro, em si mesmo, foi de fato uma tentativa de golpe, mas é indiscutível que a depredação das sedes dos Três Poderes, com a declarada intenção de manifestar inconformismo com o resultado da eleição presidencial de 2022, é a mais pura expressão do profundo desrespeito pelas instituições democráticas – e esse desrespeito é precisamente o que constitui o ânimo putschista. Que ninguém se engane: aqueles que tentam confundir a opinião pública a respeito do 8 de Janeiro, como se o que ocorreu ali tivesse sido apenas um passeio familiar que degenerou em bagunça, fazem-no com o objetivo de tornar tolerável que se ponham abaixo os símbolos da concertação política que viabiliza a vida civilizada e produtiva em sociedade.
Essa tentativa de normalizar a ofensa às instituições democráticas não começou no 8 de Janeiro nem culminou ali. É um processo longo de desmoralização da República, que teve em Jair Bolsonaro seu mais bem-sucedido líder e instigador e que se perpetuará com os filhotes do bolsonarismo, alguns deles até mesmo mais ousados que o mestre. Contra esse estado de coisas, só há dois remédios, que devem ser tomados de modo combinado: primeiro, providenciar que nenhum participante da trama golpista ora investigada, seja civil, seja militar, fique impune; e, segundo, preservar a memória do horror do 8 de Janeiro, impedindo que os golpistas reescrevam maliciosamente a história conforme seus propósitos liberticidas.
Num país marcado pela baixa vocação à memória, esses dois anos ajudaram a sedimentar a ideia de que o 8 de Janeiro não é mero fato pretérito, mas uma ferida aberta na sociedade brasileira; que não foi fruto de geração espontânea, mas de orquestração golpista; que não se resumiu a meros e aleatórios atos de vandalismo, mas vicejou da insídia do bolsonarismo e de seu maior vândalo político – o presidente que passou anos lançando suspeitas sobre as instituições e alimentando a resistência a todo e qualquer resultado das urnas que lhe fosse desfavorável. Foi o seu ardil para criar as condições que conduzissem o Brasil a uma ruptura, a ser resolvida por tiranetes bolsonaristas.
Vale repetir sempre: sem Jair Bolsonaro não haveria 8 de Janeiro. Coube ao ex-presidente criar o mito fundador do golpismo contemporâneo. Como toda corrente autoritária, o bolsonarismo tentou capturar para si o monopólio da virtude cívica. Tratou o Exército como se fosse dele. Falseou a ideia de patriotismo e usurpou o pensamento conservador. No 8 de Janeiro, porém, os verdadeiros patriotas estavam assistindo atônitos às cenas de depredação e violência, e não atacando as sedes dos Três Poderes; já os verdadeiros conservadores preconizam a preservação das instituições e defendem o império da lei e do Estado de Direito, e não a sua destruição.
A boa notícia é que, passados dois anos, 86% dos brasileiros, segundo pesquisa Genial/Quaest, desaprovam o ataque aos Poderes, patamar que se mantém em todas as regiões, faixas de renda, escolaridade e idade. Não há diferença estatística nem mesmo entre eleitores de Bolsonaro e do presidente Lula da Silva.
Ou seja, a maioria dos brasileiros sabe muito bem o que viu em 8 de janeiro de 2023.