Além de ceifar a vida de quase 2,8 milhões de pessoas, a peste do coronavírus está agravando a fome no mundo. Já em 2019, 135 milhões de pessoas em 55 países padeciam de crise alimentar por causa de conflitos, variações climáticas extremas, choques econômicos ou uma combinação de tudo isso. Agora, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), são 174 milhões em 58 países – mais de 34 milhões sofrendo insegurança alimentar aguda, ou seja, estão a um passo de morrer de fome.
Embora a maior parte dos países afetados esteja na África, a fome deve recrudescer na maioria das regiões do mundo. Extremos climáticos resultantes do fenômeno La Niña devem continuar em abril e maio, provocando tanto a falta de chuvas, como no Afeganistão, quanto o excesso, como no Sudão. Nos próximos meses, a produção de grãos e os pastos no oeste da África podem ser dizimados por novas nuvens de gafanhotos.
Dentre os 20 focos mais graves, a FAO aponta alerta máximo em Burkina Faso, Nigéria, Iêmen e Sudão do Sul. No Iêmen, por exemplo, o contingente de pessoas em situação de catástrofe alimentar deve triplicar até junho, saltando de 16 mil para mais de 47 mil, e o número de pessoas em níveis agudos de insegurança alimentar deve crescer 3 milhões, chegando a 16,2 milhões (54% da população). Estes países são flagelados por uma combinação de fatores, mas o mais grave é o conflito armado.
A tragédia é especialmente ultrajante quando agravada pelos desdobramentos da violência – ruptura do comércio e da agricultura, deslocamentos ou confinamentos de comunidades, perdas de vidas e ativos –, que ainda dificulta o acesso à assistência humanitária. Os conflitos armados devem crescer em países como Afeganistão, República da África Central, Nigéria, Moçambique, Somália e Sudão.
“A magnitude do sofrimento é alarmante”, disse o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu. “Cabe a todos nós agir agora para salvar vidas, salvaguardar suprimentos e evitar uma situação pior.” Mas os países que subsidiam partes em conflito com armas e recursos têm uma responsabilidade redobrada.
Em termos econômicos, a América Latina foi a região mais impactada pela covid e deve ter a retomada mais lenta. Países que já lutavam contra a instabilidade política e mazelas socioeconômicas prolongadas, como o Haiti ou as repúblicas centro-americanas de Honduras, El Salvador, Guatemala e Nicarágua, devem sofrer as deteriorações econômicas mais agudas.
O Brasil tem uma responsabilidade humanitária especial para com o povo venezuelano sob o jugo da ditadura chavista, alerta o relatório. A hiperinflação e o recrudescimento das sanções internacionais, agravadas com as restrições da covid-19, estão deteriorando as condições alimentares do país vizinho a olhos vistos. Já em 2019 a insegurança alimentar atingia 9,3 milhões de venezuelanos. No fim de 2020, a inflação alimentar batia os 1.700%. A degradação econômica deve desencadear novas ondas migratórias.
O Brasil precisa se preparar para apoiar imigrantes e comunidades nas áreas de fronteira, incrementando o acesso a suprimentos essenciais e às oportunidades de renda.
O Plano de Resposta Humanitária da ONU pede US$ 226 milhões para a segurança alimentar, suprimentos e intervenções nutricionais na Venezuela. Respostas emergenciais incluem garantir a alimentação de crianças e robustecer a assistência humanitária às necessidades mais urgentes.
Em termos globais, “precisamos urgentemente de três coisas para impedir que milhões morram de fome”, disse o diretor executivo do Programa Alimentar Mundial, David Beasley: “As lutas precisam parar, devemos ter acesso às comunidades vulneráveis para fornecer ajuda vital e, acima de tudo, precisamos de doadores para compor os US$ 5,5 bilhões que estamos pedindo este ano”. Não estava em poder da humanidade impedir o surgimento de uma peste letal. Mas está em seu poder mitigar as suas repercussões mais catastróficas, como a fome. A resposta à atual crise alimentar definirá o status moral da atual geração pelo resto da história.