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O legado de Murdoch

Titã da mídia deixa a direção do conglomerado que ajudou a envenenar a democracia nos EUA

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Por Notas & Informações
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Aos 92 anos, Rupert Murdoch anunciou sua aposentadoria como presidente da Fox e da News Corporation, o maior e mais influente conglomerado de mídia do mundo. É um gigante que se retira, deixando um legado difícil de ignorar: o jornalismo que Murdoch dirigiu e patrocinou, ao mesmo tempo que consolidou o imenso vigor de seus negócios, foi em parte responsável pela degradação da democracia norte-americana.

No momento em que empresas jornalísticas no mundo inteiro lutam para sobreviver em meio a mudanças drásticas no modo como se produzem, distribuem-se e consomem-se notícias, é tentador acreditar que a Fox, em razão de seu sucesso, possa servir de modelo para atravessar a tormenta. Fazê-lo, no entanto, seria renunciar ao que há de mais caro no jornalismo – a busca pela verdade – em favor da excitação permanente dos leitores e telespectadores, que se converte em audiência, cliques e compartilhamentos ao infinito.

Ademais, o modelo de Murdoch prescinde de credibilidade, que desde sempre lastreou o bom jornalismo. Ao dar à sua audiência somente aquilo que ela supostamente deseja, e em doses cavalares, a Fox tem necessariamente que abrir mão dos cuidados jornalísticos mínimos e, sobretudo, de honestidade.

Foi assim, por exemplo, que a Fox sustentou histericamente, nos momentos tensos que se seguiram à eleição de Joe Biden à presidência, em 2020, que a votação havia sido fraudada com a ajuda da empresa responsável por urnas eletrônicas. E continuou a sustentar essa versão mentirosa mesmo sabendo que se tratava de mentira, razão pela qual levou um processo judicial que só foi encerrado graças a um acordo com a empresa difamada – que recebeu uma indenização de US$ 787,5 milhões.

Esse desfecho, embora didático, não muda a essência do problema. O império de Murdoch será para sempre lembrado como o dínamo que alimentou a extrema direita americana, envenenando o debate público com mentiras sistemáticas, dia e noite, para dar sentido ao discurso delirante de gente incapaz de viver numa democracia.

Nem na despedida Murdoch se emendou. Dizendo-se um guerreiro da liberdade de expressão, na qual se escoram todos os que pretendem usá-la para minar democracias mundo afora, o empresário bilionário travestiu-se de advogado do “homem comum” – o público-alvo da Fox – ao criticar governantes que “tentam silenciar os que questionam seus propósitos” e a elite “que despreza os que dela não fazem parte”. E ainda disse que “grande parte da mídia conspira junto com essa elite, vendendo narrativas políticas em vez de buscar a verdade”.

No mesmo comunicado, Murdoch garantiu que continuará a acompanhar de perto o trabalho de suas empresas, num claro recado para aqueles que porventura queiram mudar o rumo das coisas em sua ausência. Nem seria necessário: nesta altura, a Fox tornou-se sinônimo de jornalismo irresponsável, e não há nada que os sucessores de Murdoch possam fazer a respeito, na remota hipótese de que queiram.