“Podemos resumir a história da Rússia em uma única frase?”, perguntou-se Aleksander Soljenitsyn em seu Arquipélago Gulag. “É a terra das oportunidades sufocadas.” À primeira vista, o martírio de Alexei Navalni, o principal líder da oposição russa, morto num novo Gulag no Ártico, pareceria confirmar esse desespero. Em 2020 ele foi envenenado e tratado na Alemanha, onde poderia ter permanecido em segurança. Mas voltou, sem ilusões: sabia que seria preso, torturado e provavelmente assassinado, como, ao que tudo indica, foi.
Ainda que, até o último dia – como mostra um vídeo na véspera de sua morte –, não tenha perdido o bom humor nem a esperança numa futura Rússia livre e pacífica, tampouco tinha ilusões sobre o presente: as coisas iriam piorar antes de melhorar. E estão piorando. A guerra sacrifica jovens e sufoca a economia. Qualquer um pode ser preso ou morto por divulgar discursos pacifistas. Desde que Vladimir Putin assumiu o poder, há 20 anos, ao menos 8 opositores políticos sofreram mortes “misteriosas”. Nos últimos 10 anos o número de prisioneiros aumentou 15 vezes. Boris Nadezhdin, o único líder disposto a encampar uma candidatura de protesto nas eleições do mês que vem, foi barrado pela Suprema Corte.
As mensagens finais de Navalni não insuflaram ilusões: os tempos não estão maduros para o caminho ideal, uma virada democrática, nem para aquele que é, talvez, o único possível, um levante armado. Seu testemunho foi simplesmente um apelo à consciência dos cidadãos comuns: vocês não precisam ser heróis, não precisam ser presos ou se martirizar, só não mintam para si mesmos.
É uma mensagem que precisa ser propagada pelo mundo livre. À medida que Putin caminha para um domínio mais longo que o de Stalin e a guerra de agressão na Ucrânia entra em seu terceiro ano, a fadiga invade corações e mentes e uma subcultura que tenta racionalizar a iniquidade de Putin se faz ouvir. Os “idiotas úteis” repetem sua propaganda: a Rússia foi provocada pela Otan, e a Ucrânia é uma entidade artificial liderada por neonazistas fantoches do imperialismo americano. Os “pragmáticos úteis” alegam que é inútil seguir sacrificando ucranianos numa guerra que não podem vencer. Em ambos os casos, o corolário é o mesmo: deem a Putin o que ele quer e ele nos deixará em paz.
Mas se a comparação com a escalada de agressões de Hitler e a pusilanimidade das lideranças ocidentais já se tornaram um clichê, é porque os paralelos são óbvios demais. O movimento de regimes fascistas como o de Putin é irreversível: a repressão dentro retroalimenta a agressão fora e vice-versa. “A guerra”, disse Hitler a Goebbels em 1943, “tornou possível para nós soluções de problemas que nunca seriam solucionados em tempos normais.” Inversamente, a opressão torna possíveis guerras impossíveis em tempos normais.
“(Se eu for morto) a coisa óbvia é: não desistam”, disse certa vez Navalni. “Tudo o que é preciso para o mal triunfar é que as pessoas boas não façam nada.” Para o Ocidente, este é um chamado à ação: libertar a Ucrânia é o melhor modo de libertar a Rússia e afastar a ameaça de Putin. Para os russos exilados, é um chamado a gritar as verdades de Navalni sobre os telhados. Os cidadãos russos podem não ter essa opção, mas sempre serão livres para não mentir a si mesmos. Sob todo o seu desespero, Soljenitsyn reuniu forças para escrever um ensaio, Não Vivam de Mentiras, e suas verdades tiveram um papel não desprezível no desmoronamento do império soviético, que ele sobreviveu para ver.
“Se tomarmos a mais ampla e sábia visão de uma Causa, não há algo como uma Causa Perdida, porque não há algo como uma Causa Ganha”, disse o poeta T. S. Eliot – que acrescentou: “Lutamos por causas perdidas porque sabemos que nossa derrota e nossa frustração podem ser o prefácio da vitória de nossos sucessores, ainda que a vitória em si mesma seja temporária; nós lutamos antes para manter algo vivo do que na expectativa de que algo triunfará”. Navalni não sobreviveu para ver o desmoronamento da tirania de Putin, mas, se mantiverem suas verdades vivas, a Rússia e o mundo talvez vejam.