Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O orçamento secreto ‘pegou’

Decisão do STF que deveria pôr fim ao esquema virou letra morta. Lula é o ‘bobo da corte’ da vez, perdido ante um Congresso cada vez mais senhor do Orçamento, oficial e maliciosamente

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

É sempre bom refrescar memórias diante da naturalização de certas aberrações na vida política nacional. O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade do chamado orçamento secreto em dezembro de 2022. Um ano e meio antes, este jornal revelou ao País a existência desse sofisticado esquema de compra de apoio parlamentar urdido pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro e lideranças do Congresso. Na prática, porém, aquela correta decisão do STF não resistiu ao teste do tempo – ou não “pegou”, como se costuma dizer por aqui sobre leis ou decisões judiciais que viram letra morta, ignoradas olimpicamente que são até por mandatários. O que “pegou” mesmo foi o orçamento secreto.

Além da subversão da decisão da mais alta instância do Poder Judiciário, uma daquelas aberrações por si só, há fartas evidências de que o esquema, ao que parece, veio para ficar, ainda que o instrumento técnico utilizado para sua perpetuação não seja mais a emenda de relator (RP-9). Há poucos dias, o Estadão revelou que o orçamento secreto não apenas segue vivíssimo no governo do presidente Lula da Silva, como se converteu em valioso trunfo eleitoral neste ano de eleições municipais. A rigor, nem de “moeda de troca” o esquema pode mais ser chamado, pois ainda que o governo federal abra as comportas por onde jorram as emendas parlamentares, oficiais e oficiosas, isso não se reverte em apoio congressual minimamente confortável.

Ainda no campo das recordações, convém lembrar que Lula da Silva, então candidato à Presidência da República, referiu-se a Bolsonaro como um “bobo da corte” durante uma entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo. Lula aludia ao fato de Bolsonaro ser um chefe de Estado e de governo sem poder, pois era “refém do Congresso Nacional”, um presidente que nem “sequer cuida do Orçamento”, afinal, disse o petista, “quem cuida do Orçamento é o Lira”, em referência ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Invertam-se as posições de Lula e Bolsonaro quase dois anos depois e o quadro segue rigorosamente inalterado. Como já sublinhamos nesta página, hoje, sob os auspícios de Lula, vige o “orçamento secreto 2.0″.

Pois é esse esquema em tudo antidemocrático – rebatizado e revigorado, mas igualmente inconstitucional – que tem não só alimentado o apetite voraz de certos parlamentares por nacos do Orçamento, sobretudo os que integram os grupos políticos liderados por Lira e pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), como turbinado as pré-campanhas de candidatos espalhados Brasil afora que disputarão as eleições municipais que se avizinham.

Uma parte dos recursos que outrora abasteciam o “orçamento secreto 1.0″, chamemos assim, passou à alçada do Poder Executivo a partir da decisão do STF de 2022. O valor de R$ 19,4 bilhões previstos para emendas RP-9 em 2023 foi redistribuído para sete Ministérios (R$ 9,85 bilhões) – Saúde, Cidades, Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Desenvolvimento Regional, Agricultura e Pecuária, Esporte e Educação – e para a alínea das emendas RP-6, individuais (R$ 9,6 bilhões). Entretanto, isso se descortinou como mera formalidade. À margem da decisão do STF, a disposição desses recursos em sua totalidade jamais saiu do raio de ação dos cupins do Orçamento no Congresso. Sem que “padrinhos” e “madrinhas” dos repasses dessa bilionária verba remanescente sejam identificados, as pastas têm transferido o dinheiro para os municípios seguindo ordens de deputados e senadores – e fora do alcance de controles institucionais claros e precisos para manejo de recursos públicos, ainda que Executivo e Legislativo digam o contrário.

E sob essa opaca “gestão”, por assim dizer, a distribuição de uma vultosa parte do Orçamento segue orientada por critérios eminentemente políticos, e não técnicos – que dirá morais ou republicanos. Prefeituras associadas a parlamentares recebem mais recursos do que outras somente em razão dessa proximidade, e não por necessidades comprovadas. Além de secreto, esse orçamento é só para quem tem padrinho.