O Estadão tem feito uma série de reportagens sobre as recentes vitórias de partidos de esquerda na América Latina nos últimos anos, mostrando como os resultados para a população estão muito aquém das promessas. Conforme observou o historiador peruano Alvaro Vargas Llosa em entrevista ao jornal, os sucessivos governos de esquerda na América Latina têm falhado na promoção do desenvolvimento social e econômico da região. Agora, depois de quatro anos de autoritarismo populista e disfuncional de Jair Bolsonaro, o Brasil pode voltar a ser governado pela esquerda. A pergunta surge naturalmente: afinal, o que essa esquerda quer?
Se é certo que, com seus devaneios contra as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral, Jair Bolsonaro uniu diferentes correntes ideológicas na defesa da democracia – o respeito ao resultado das eleições é princípio inegociável –, é também certo que a esquerda brasileira precisa revisar diversas posições para que possa ser qualificada de democrática. Basta pensar que o PT e outros partidos de esquerda, enquanto endossam manifestos em defesa da democracia no Brasil, continuam apoiando regimes ditatoriais como Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Não é coerente chamar Jair Bolsonaro de “genocida” e “fascista” e, ao mesmo tempo, não reconhecer as seguidas violações de direitos humanos feitas pelo governo cubano. Não é possível criticar o envolvimento de setores das Forças Armadas na política bolsonarista para logo depois fazer vista grossa à participação expressiva de militares na política venezuelana.
Na preparação dos atos cívicos do dia 11 de agosto passado, muitas vozes, também da esquerda, disseram, com razão, que não era possível ficar em cima do muro na defesa da democracia. Abster-se de apoiar os manifestos em defesa das eleições e do Judiciário era uma tomada de posição: significava negociar com princípios democráticos que são inegociáveis. No entanto, é exatamente isso o que o PT e outros partidos de esquerda vêm fazendo ao longo de décadas quando se trata de atos autoritários e violações de direitos humanos envolvendo governos que são seus amigos. Recusam-se a participar de qualquer manifestação de repúdio, em um perverso negacionismo. Para a esquerda, democracia e direitos humanos têm uma vigência condicionada, a depender das circunstâncias políticas?
A incoerência da esquerda não está restrita ao plano externo. Lula da Silva, por exemplo, nunca pediu desculpas ao eleitor pelo mensalão, sistema criminoso que perverteu a representação democrática. Como o líder petista minimiza ou nega essa compra de votos, fartamente provada, e não reconhece o quão danosa foi para a democracia, é lícito presumir que, num eventual terceiro mandato, talvez não hesite em repetir a dose.
A esquerda também tem o dever de dizer – afinal, estamos numa democracia – se deseja governar com responsabilidade. É preciso dizer quais são os planos concretos para seu eventual governo, algo especialmente necessário tendo em vista que, até agora, o PT nunca se mostrou contrito pelos erros cometidos na condução da política econômica de Lula e de Dilma, erros esses que, até hoje, são sentidos pela população. A proposta é seguir com as mesmas ideias atrasadas, de intervenção populista na economia, ou eles terão um mínimo de piedade com o País?
Afinal, o que a esquerda quer? Não há dúvida de que ela quer o poder. Esquecendo-se de tudo o que falou sobre os governos tucanos em São Paulo, Lula da Silva até colocou Geraldo Alckmin como vice em sua chapa. Mas, no regime democrático, conquistar o poder exige delinear minimamente os planos e projetos, firmando um compromisso efetivo com o eleitor.
Talvez seja este grande receio que a esquerda ainda desperta: um exercício do poder voltado exclusivamente para si, para suas ideias, para seu partido, para os interesses do seu guru. Ora, a democracia requer aceitar a legitimidade dos adversários e das ideias divergentes; requer denunciar ditaduras onde quer que surjam; e requer governar com responsabilidade, pois governos irresponsáveis criam castas de privilegiados e são os algozes dos pobres. Estará o PT pronto para ser verdadeiramente democrático?