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O sindicato dos magistrados

A título de moralizar a farra dos penduricalhos, CNJ a legitimou, criando um ‘teto’ obsceno. A magistratura seguirá abusando de sua autonomia se o Legislativo não impuser limites

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Por Notas & Informações
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Há poucos dias, numa sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Flávio Dino se queixou dos “saltos ornamentais hermenêuticos” de juízes e outros servidores de carreiras jurídicas para engordar seus contracheques. “Vemos uma criatividade administrativa, sobretudo em temas remuneratórios, que é algo que constrange o Poder Judiciário, porque temos uma moldura constitucional e o Estatuto da Magistratura, na Lei Orgânica da Magistratura, que, a cada dia, em ziguezagues hermenêuticos, é infelizmente driblada”. A ministra Cármen Lúcia fez coro, afirmando que aqueles que empregam essas manobras afrontam as normas constitucionais e o direito do cidadão. Só faltou subirem num caixote para exigir providências da Corte constitucional.

Como o STF não as toma, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aparentemente vestiu a carapuça e decidiu botar ordem na casa – mas com moderação. Em decisão monocrática, o corregedor nacional de Justiça, Mauro Campbell, determinou que os penduricalhos para magistrados não poderão exceder R$ 46,3 mil mensais, o mesmo valor do teto do funcionalismo público. Ou seja, todos os servidores têm de viver sob esse teto, mas, acima dele, os magistrados podem construir uma espaçosa cobertura. Claro que tudo tem limite, e o limite do CNJ para a violação do teto constitucional é de 100%.

Mas mesmo esse limite é gelatinoso. Primeiro, porque, como os penduricalhos não são tributados, um juiz que receber o montante de R$ 46,3 mil ganhará em termos líquidos muito mais do que o dobro do teto. Depois, porque a decisão vale, a rigor, só para um caso específico de um tribunal de Sergipe, que foi levado ao STF. Para os outros ela não tem “efeitos vinculantes” e deve apenas “inspirar a adoção de providências idênticas”. Como é improvável que outros tribunais e corporações – sempre ávidos na hora de invocar o princípio da “isonomia” para equiparar privilégios dados a colegas – se sintam, digamos, “inspirados”, os juízes e procuradores de outros Estados, que estão sempre a se queixar da penúria e sacrifícios impostos à profissão, podem ficar tranquilos: o limite para os salários dos magistrados não é nem a lei nem a moral, mas apenas a “inspiração”.

O caso expõe a urgência de uma legislação que regule a concessão de benefícios e ponha fim à farra dos supersalários, mas que também reforme o CNJ. Esse conselho e seu irmão gêmeo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), foram concebidos no início da redemocratização e criados em 2004, na esteira de escândalos de corrupção envolvendo a Justiça. Como outros conselhos similares ao redor do mundo, eles têm uma dupla função: de um lado, garantir a autonomia de sua corporação ante os demais Poderes, e, de outro, fiscalizar a sua atuação, discipliná-la e prestar contas à sociedade. O problema é que a primeira função foi hipertrofiada na mesma proporção em que a segunda foi atrofiada.

Em que pesem alguns avanços institucionais referentes à racionalização dos serviços, esses conselhos padecem de um vício de origem: dos 15 conselheiros do CNJ e 14 do CNMP, apenas quatro são externos às carreiras. Ao longo dos anos estabeleceu-se uma simbiose entre os controladores (os conselhos) e os controlados (magistratura e Ministério Público), transformando os conselhos em um veículo de expansão do poder de juízes e procuradores e arena de reivindicação de vantagens corporativas, não se furtando para tanto a todo tipo de extrapolação das funções conferidas a eles pela Constituição. O aparelhamento por associações de classe é sistemático. Desde a sua criação, o CNMP, por exemplo, foi presidido por membros da Associação Nacional de Procuradores da República.

Os conselhos, que deveriam ser um meio para a sociedade exercer um controle sobre o Judiciário e o Ministério Público, se transformaram em sindicatos especializados em institucionalizar privilégios para juízes e procuradores. Eles continuarão criando benefícios e arbitrando sua legalidade, a menos que os representantes do povo no Congresso cumpram sua função e estabeleçam uma regulação decente sobre as verbas do funcionalismo e uma reforma saneadora na governança dos conselhos.