Segundo os apresentadores da TV Justiça, a posse de Luís Roberto Barroso como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi das mais emocionantes da história. Entre a abertura, com o Hino Nacional, e o encerramento, com Todo Sentimento, na voz de Maria Bethânia, o decano Gilmar Mendes falou em “democracia defensiva” (eufemismo para “democracia militante”, categoria da Constituição alemã, não da brasileira), fez uma ofensiva contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e brindou o “grande estadista” Lula da Silva. Na presença dos presidentes da República, da Câmara e do Senado, pediu harmonia e pacificação. Enquanto isso, na Câmara tramitava uma PEC dando poder ao Congresso de derrubar decisões do Supremo, e o Senado aprovava o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que o STF havia declarado inconstitucional. O choque de realidade dimensiona o desafio do novo presidente.
Barroso louvou a Justiça brasileira como uma “das mais produtivas do planeta”, julgando 30 milhões de processos por ano. Mas quantidade não significa produtividade. Ela é também das mais caras e lentas. Nenhuma corporação no Brasil (quiçá no mundo) extrai tantos privilégios da lei quanto a responsável por aplicá-la igualmente a todos. O Brasil está mal nos rankings de segurança jurídica. Uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros revela que 52% dos juízes de primeiro grau não consideram a jurisprudência e 55% dos ministros de tribunais superiores não se pautam por súmulas. Ou seja, em sua maioria, os juízes do piso não seguem as cortes e os do topo não seguem nem a si mesmos.
Tudo isso se dá no contexto do tumulto político e institucional que tomou o País nos últimos anos. Desde que Barroso é ministro do Supremo, o Brasil passou pelas Jornadas de Junho, o petrolão, o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro. Muitas vezes o STF ajudou a restaurar a normalidade institucional – por exemplo, garantindo prerrogativas dos Estados na pandemia ou pondo fim ao orçamento secreto –, mas, no afã de combater abusos ou omissões do Ministério Público, do Congresso e do Executivo, cometeu abusos que minaram essa normalidade.
Em meio à espiral de judicialização da política, retroalimentada pela politização da Justiça, Barroso falou em contenção do Judiciário, mas deu mostras de incontinência ao listar prioridades, como se fosse candidato num palanque: combate à pobreza, desenvolvimento sustentável, investimentos em educação básica, ciência, saneamento e moradia e retomada da liderança ambiental do Brasil. São metas louváveis, claro, mas para um presidente da República, e não para o presidente do STF. O povo já elegeu seus representantes no Executivo e no Legislativo. Boas ou ruins, as decisões são desses mandatários. À Corte cabe, se provocada, garantir sua consonância com a Constituição.
O problema é como entender essa consonância. Barroso, em sua obra Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, afirma que o Direito é política, enquanto produto da vontade da maioria na Constituição, e não é política, porque não se pode submeter “a noção do que é correto e justo à vontade de quem detém o poder”. Entre esse “é” e o “não é” seria natural deduzir a demarcação entre os Poderes: o Direito é política porque o Legislativo tem autonomia para positivar a vontade da polis, e não é porque o Judiciário tem autonomia para interpretá-la nos conflitos particulares. Mas Barroso conclui pela “fluidez da fronteira entre política e justiça”: porque o Direito é política, ante insuficiências do Legislativo, cabe ao Judiciário normatizar o que é “correto e justo”. Com esse tipo de hermenêutica, a Corte já deu mostras de impaciência com seu papel de guardiã da Constituição e quis ser sua reformadora.
Barroso aludiu à sua fórmula predileta para descrever a magistratura: a “vanguarda iluminista que empurra a história na direção do progresso civilizatório”. Mas, como sempre e mais do que nunca, o País precisa é de um Judiciário que se atenha às normas e competências traçadas pela Constituição.