Por ocasião da visita do presidente Lula da Silva à Europa, autoridades afirmaram a ambição de ratificar o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE) neste ano. Com boa-fé e pragmatismo, é possível. Mas nessa novela de quase 30 anos esses expedientes nem sempre estiveram presentes. É preciso evitar que os erros se repitam.
Mais do que o livre-comércio, o acordo inclui vertentes políticas e culturais. Ele “cria o quadro institucional necessário para facilitar a cooperação numa vasta gama de áreas de interesse mútuo, desde a proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável até a regulação da economia digital e a luta contra o crime organizado”, apontou o vice-presidente da Comissão Europeia, Josep Borrell. “Esse acordo reforçará as nossas relações não só entre governos e instituições, mas também entre parlamentares, sociedade civil, empresários, estudantes, universidades, cientistas e criadores.”
É o primeiro acordo birregional abrangente do Mercosul e o maior da UE. As aproximações começaram em 1995, mas emperraram nos anos 2000 por relutâncias protecionistas: dos europeus, em relação à sua agropecuária; dos latino-americanos, à sua indústria. A conjunção das presidências de Michel Temer e de Mauricio Macri, na Argentina, deu tração às negociações e o acordo foi fechado em 2019. As rupturas geopolíticas recentes o tornam estratégico para reduzir dependências excessivas, diversificar cadeias de valor e estabelecer a cooperação com parceiros políticos e econômicos confiáveis.
Por isso, é preciso dissolver velhas resistências que voltam sob novas formas. A hostilidade dos fazendeiros europeus foi revigorada pelos humores antiglobalistas da nova direita e, sobretudo, pela preocupação ambiental – abastecida pelo antiambientalismo do ex-presidente Jair Bolsonaro. A UE insiste em vincular a ratificação a compromissos ambientais.
Seria cínico desmoralizar angústias legítimas com a preservação ambiental. Mas seria ingênuo ignorar o oportunismo de políticos europeus em apertar restrições para agradar tanto ao eleitorado jovem de esquerda (os “verdes”) quanto aos velhos agricultores.
Sem dar as costas nem bater de frente, a solução passa por elaborar, a partir do arcabouço aprovado, mecanismos de interesse mútuo. O Brasil já tem uma legislação ambiental de ponta e pode reforçar medidas de combate ao desmatamento, comprometendo-se, por exemplo, a recompor órgãos de fiscalização e aumentar gradualmente a participação orçamentária do Ministério do Meio Ambiente. A Europa, por sua vez, pode apoiar esses esforços com recursos técnicos e financeiros, especialmente em programas de inclusão social na Amazônia. Além disso, precisa renunciar à pretensão de vincular sanções comerciais ao descumprimento de metas ambientais, coisa estranha ao direito internacional ambiental.
O Mercosul faz bem em insistir que, além da proteção ambiental, o desenvolvimento sustentável deve se equilibrar em outros dois pilares: o social e o econômico. A própria Europa, para evitar o colapso desses pilares após a guerra na Ucrânia, se viu obrigada a exumar fontes de energia “suja”.
Nem por isso os governos petista e peronista devem ceder à tentação de reabrir negociações para erguer barreiras protecionistas. Lula fala em manter o direito de preferir produtos nacionais nas compras governamentais. Já existem exceções desse tipo e podem ser flexibilizadas, mas não se deve forçar a mão. Até porque o acordo prevê aberturas gradativas, dando tempo aos setores produtivos de ambos os lados para se modernizarem. Se o governo quer uma “neoindustrialização”, o melhor a fazer não é proteger a indústria, mas criar condições para que ela se torne competitiva, por exemplo, aprovando uma boa reforma tributária e investindo em desburocratização, infraestrutura e inovação para reduzir o “custo Brasil”.
Após quase três décadas, diversos estudos mostram que o acordo é comercialmente lucrativo para ambas as partes. Com boa-fé e pragmatismo, não será preciso gastar tanto tempo para que ele se torne também sustentável.