O cantor e compositor Gilberto Gil é famoso por suas imensas virtudes artísticas, mas é também conhecido por ser absolutamente incapaz de fazer mal a alguém. Isso não impediu que um bolsonarista o importunasse e o ofendesse gratuitamente no Catar, onde o cantor estava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo.
Esse episódio, como tantos outros nos últimos tempos, comprova a absoluta incapacidade dos bolsonaristas radicais de viverem numa sociedade democrática. Esses extremistas não conseguem ver o outro como alguém cujas opiniões devem ao menos respeitar, e sim como inimigo que deve ser hostilizado e, no limite, eliminado, como, aliás, provam os diversos crimes políticos cometidos durante a recente campanha eleitoral.
Gilberto Gil é um patrimônio da cultura nacional. Não é preciso ser fã de sua música para reconhecer seu valor, sejam quais forem nossas convicções políticas. É perfeitamente possível gostar de Gil sem concordar com suas ideias ou posicionamentos. Mas bolsonaristas radicais não conseguem enxergar o mundo fora do cercadinho ideológico do qual são prisioneiros voluntários. Nesse cercadinho, mesmo um homem gentil e cordato como Gilberto Gil, aos 80 anos de idade, deve ser vilipendiado como um criminoso apenas porque é eleitor do petista Lula da Silva. E não basta humilhar: a cena do assédio deve ser gravada em celular e disseminada nas redes sociais, para gozo de outros extremistas.
São justamente esses celerados os que hoje se apresentam como campeões da defesa da democracia e da liberdade de expressão. No país que eles idealizam, a julgar por suas atitudes, quem não estiver alinhado incondicionalmente ao bolsonarismo deve procurar outro lugar para morar – do contrário, sofrerá dia e noite a perseguição de camisas pardas inconformados com a existência de gente que não pensa como eles. Isso obviamente não é democracia, muito menos civilização.
Quem hostiliza pessoas públicas em situações corriqueiras da vida social fere um pressuposto da vida democrática: o direito à pluralidade de ideias e visões de mundo. Os agressores, e isso vale também para quem aplaude esse tipo de espetáculo, partem da premissa de que seria correto intimidar supostos adversários políticos a ponto de constrangê-los a não sair de casa, sob o risco de sofrerem assédio e humilhação. Tal princípio é totalmente equivocado, pois ninguém tem o direito de infernizar a vida alheia − menos ainda se o motivo para isso for de ordem política ou ideológica.
De novo, é preciso lembrar que a democracia não só comporta vozes dissonantes, como extrai disso a sua força maior, isto é, a capacidade de solucionar conflitos por meio do diálogo político − e não da guerra. Por óbvio, há limites para quem se vale das liberdades democráticas com o intuito de implodir a democracia. Mas, de resto, as diversas tendências e expressões do pensamento devem, sim, ser toleradas e ter seu lugar assegurado na sociedade, desde que respeitem a lei.
Não há nada, numa sociedade civilizada, que ampare a humilhação pública de quem quer que seja. Logo, é completamente descabido desrespeitar alguém, seja figura pública ou não, com base em sua atuação ou preferência política. Agir dessa forma só contribui para calar vozes e para reduzir o debate público a uma briga de torcidas. É curioso, e não deixa de ser contraditório, que bolsonaristas extremados, cujos discursos exaltam o direito à liberdade, protagonizem ou endossem cenas como as registradas no Catar. Julgar-se autorizado a ofender e atazanar opositores em nome da liberdade de expressão é prova de rematada ignorância cívica e de inegável vocação autoritária.
Que ninguém se engane: a sociedade brasileira só tem a perder com a falta de tolerância e com o desrespeito. Discordâncias políticas são bem-vindas e ajudam o País a avançar. Divergir, no entanto, mesmo quando se tem razão, não dá a ninguém o direito de ofender e tentar calar quem pensa diferente. Cada milímetro de avanço da incivilidade no Brasil é uma chance a menos para que o País resolva seus impasses e caminhe rumo ao desenvolvimento social, político e econômico.