Edson Arantes do Nascimento, soubemos há pouco, era mortal. Mas Pelé não. Como os deuses do Olimpo, Pelé não envelhece, não enruga, não falece. Até o fim dos tempos, Pelé estará vivo, marcado na memória mundial como o homem – o brasileiro – que usou o futebol para fazer a humanidade sonhar.
Desde os 17 anos, idade em que ainda não se distingue muito bem a realidade das fantasias juvenis, esse gênio generoso estimulou as ilusões de bilhões de pessoas (súditos seria a palavra mais adequada) com sua arte. Os idiotas da objetividade, diria Nelson Rodrigues, se apegam aos mil e tantos gols de Pelé, marca até hoje intocada, como o principal argumento para qualificá-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos. Isso é o mesmo que dizer que se um norueguês qualquer, com bom faro de gol, superar esse recorde, então haverá um novo “rei do futebol”. Ora, Pelé poderia ter feito 3 mil gols, mas definitivamente não seria isso o que o distinguiria, e sim sua capacidade inesgotável de emocionar torcedores de todos os times e seleções, em todas as latitudes, mesmo depois de sua aposentadoria. O gol, que ele buscava com incrível obsessão, era apenas a modesta recompensa para esse virtuose inigualável.
Se o futebol, o maior esporte planetário, transcende nacionalidades e culturas, Pelé era sua língua franca. Com domínio pleno de todos os fundamentos do jogo, estava livre para ir muito além dele. Ali não estava um jogador, no sentido estrito da palavra, mas o senhor do jogo. Nelson Rodrigues certamente não foi o primeiro a perceber sua majestade, mas foi o primeiro a coroá-lo formalmente: Pelé, menino, foi chamado de “rei do futebol” numa crônica de 1958 em que Nelson escreveu que o craque “leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés”. E continua, em seu estilo: “Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”.
Pelé, de fato, parecia saber que não era deste mundo, razão pela qual costumava se referir a si mesmo em terceira pessoa, como se estivesse falando de uma entidade mística que sobreviveria ao atleta que a representava nos gramados. Tal como os reis medievais descritos pelo historiador alemão Ernst Kantorowicz (Os Dois Corpos do Rei, 1957), que tinham um corpo físico e mortal e um corpo imutável no tempo, Pelé dissociou-se de Edson Arantes do Nascimento e se tornou, desde que assombrou o mundo pela primeira vez, na Copa de 1958, um receptáculo de utopias coletivas, um ponto de comunhão de valores universais num mundo marcado pelo conflito e a mesquinhez. Poucas personalidades na história atingiram esse grau de unanimidade – algo que já seria extraordinário em si mesmo, mas que é ainda mais notável quando se recorda que sua coroação se deu numa época em que a comunicação global ainda engatinhava e em que não se produziam ídolos instantâneos como nestes tempos de internet e redes sociais.
E isso tudo sendo brasileiro. Não é algo trivial para este país, que oscila tanto entre o otimismo eufórico e o pessimismo atávico em relação às suas capacidades. Pelé encarnou, como nenhum outro, um Brasil que é naturalmente potente. Os idiotas da objetividade (eles, mais uma vez) costumam menosprezar essa potência por se tratar apenas de futebol. Mas não é apenas futebol. É identidade nacional. Quando um brasileiro é reverenciado como uma divindade em todo o mundo, sendo reconhecido como o maior de todos os tempos numa atividade que mobiliza tantas paixões, é o Brasil que se projeta e se distingue. Se o País não aproveita esse soft power (poder brando) como deveria, é outra história.
Nos próximos dias, o mundo certamente vai parar para se despedir do corpo físico e mortal de Pelé. Espera-se que as autoridades brasileiras compreendam a dimensão excepcional desse acontecimento e dediquem às exéquias reais seus melhores esforços. Não cabem, neste momento, nenhuma divergência ideológica e nenhuma objeção de caráter político: o funeral de Pelé deve simbolizar a união e o orgulho dos brasileiros, como ele simbolizou o melhor deste país quando encantou o mundo com a sua arte.